“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 14 de dezembro de 2014

O fogo e a água

      O mais recente filme de David Cronenberg, "Mapas Para as Estrelas"/"Maps to the Stars" (2014), com argumento de Bruce Wagner, é um filme magnífico sobre Hollywood e o cinema, ao nível do que anterioremnte fizeram, depois de Billy Wilder ("O Crepúsculo dos Deuses"/"Sunset Boulevard", 1950), Robert Altman ("O Jogador"/"The Player", 1992) e David Lynch ("Mulholland Drive", 2001).
                    An unexpected link: Dr. Stafford Weiss (John Cusack) is a psychologist to the stars, with one of his main clients being fading Hollywood actress Havana Segrand (Julianne Moore)
     Sem nostalgia nem fantasmas do passado, o grande cineasta canadiano enfrenta os tabus por trás do sistema que falam dele e por ele, com o incesto como ponto de partida e de chegada, para nos dar um retrato impiedoso da "fábrica dos sonhos" à altura do que ela merece para ser compreendida. Das "crianças prodígio" às grandes estrelas em segunda geração nada é poupado, e o que é mais curioso é que o ponto de partida para os irmãos Benjie/Evan Bird e Agatha Weiss/Mia Wasikowska é um poema outrora célebre do francês Paul Éluard sobre a liberdade e o seu nome.
     Compreendo a prudência da profissão cinematográfica, dos festivais internacionais de cinema à crítica mais abalizada, perante tal objecto estranho proveniente de um cineasta que tinha já dado largas ao seu espírito crítico em "Cosmopolis" (ver «"Cosmopolis" e o céu de perugia», de 10 de Junho de 2012). E aqui de novo ele não poupa em glamour e atractivos sexuais para, no percurso e na chegada, deixar expresso na narrativa fílmica um pensamento crítico original sobre o cinema e aqueles que em Hollywood o fazem.
                    
       Tudo humano, demasiado humano entre Havana Segrand/Julianne Moore e a mãe, que ela quer representar num filme, entre ela e a filha, cuja memória a não abandona. Tudo humano, demasiado humano, entre Benjie e Agatha e os seus pais, Stafford/John Cusack e Christina Weiss/Olivia Williams, entre Agatha e o irmão, entre ela e Havana, entre ela e o motorista Jerome Fontana/Robert Pattinson. Mas o humano extravasa do comum até o ponto de fuga não poder, entre pais e filhos como entre irmãos, deixar de ser a morte.
       Sem constrangimentos de qualquer espécie, jogando com os lugares-comuns do cinema e do mundo do espectáculo mesmo na cumplicidade rival que os une, David Cronenberg não poupa nem o sistema nem as suas diversas peças. E o libelo é implacável, para quem o quiser ver descomprometidamente. Haverá quem pense em exagero, em má-vontade, mas não se pode ignorar o escalpelizar detido da sociedade do espectáculo em que a própria América se transformou. 
                     Actor Robert Pattinson locks lips with Mia Wasikowska as they film a scene for their new film 'Maps to the Stars' in an abandoned lot on August 21, 2013 in Los Angeles, California. Between takes, director David Cronenberg spoke to the pair about the scene.
      Sem ignorar os outros, em especial os mais novos, manifesto especial apreço por Julianne Moore e John Cusack, dois grandes actores em entrega completa a papéis ingratos de que dão conta com grande desembaraço e enorme talento. De resto é a equipa do costume, com Peter Suschitzky na direcção da fotografia, Howard Shore na música discreta, Ronald Sanders na montagem e a fiel Denise Cronenberg no guarda-roupa.
      Este é sem dúvida um dos melhores filmes do ano e o resto é conversa fiada. O fogo e a água. Sobretudo depois da sua fase de cinema fantástico, David Cronenberg é um dos maiores cineastas contemporâneos. E aqui nem a "atracção do abismo", com a psicanálise à mistura, vos vale (sobre o cineasta ver também "Uma tragédia clássica", de 28 de Janeiro de 2012, e "Os sótãos da memória", de 4 de Março de 2012).  

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