“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O lugar do outro

    A minha aproximação de "O Acto de Matar"/"The Act of Killing", de Joshua Oppenheimer (2012), começou por ser cautelosa, por considerar que a perspectiva dos torcionários e assassinos não me interessa. Acabei por vê-lo em dvd já quase no fim do ano e é um filme extraordinário sobre o genocídio indonésio, em Sumatra, nos anos 60 do Século XX, que passa pela memória e a palavra, mas também a representação e a imagem, até chegar à consciência física do horror cometido.
                    
    Estreado em Portugal no mesmo ano de "A Imagem Que Falta"/"L'image manquante", de Rithy Panh (2013) - ver "Testemunho exemplar", de 7 de Abril de 2014 - o documetário de Joshua Oppenheimer com ele rima inevitavelmente, mas enquanto o cineasta cambodjano usava uma certa distância, que a sua presença durante os acontecimentos aconselhava, Oppenheimer chega-se ao âmago do genocídio através da palavra dos próprios torcionários e assassinos.
    Orgulhosos de si mesmos e do que fizeram no início, chegando a gabar-se de maior crueldade que os nazis ou os comunistas (estes que foram, contudo, as suas vítimas) - e toda essa parte do filme é notável pelo contentamento despudorado dos antigos torcionários impunes, que se cobrem com a própria imagem que eles fazem do cinema -, um deles é escolhido para ser acompanhado na parte final do filme. Após a reconstituição e a representação teatral terem criado uma certa distância para todos, os envolvidos e os espectadores, vai ser a filmagem de Anwar Congo no papel de vítima que vai despertar gradualmente a sua própria consciência - e também a nossa. Depois de ter visto essa sua imagem - uma imagem do cinema em que ele ocupa o lugar do seu outro, da vítima - na companhia dos netos, ele percebe fisicamente, até à repugnância, o horror do que cometeu, e é esse percurso que resgata o filme da mera denúncia, que já por si não seria pouco.
                      Film Crit Hulk Smash: THE ACT OF KILLING AND THE REAL MEANING OF IMPACT
     Não penso muito nos torcionários e assassinos responsáveis por genocídios - e foram tantos durante o século XX - a não ser para os condenar. Ora o "Acto de Matar" de Joshua Oppenheimer, sem de maneira nenhuma os absolver ou desculpabilizar, leva-me sobretudo a pensar o lugar desse outro, que acaba no filme vítima dos seus próprios actos e da sua própria memória deles, actualizada na experiência física e na imagem.
    Terrivelmente perturbador na sua descrição oral e na sua encenação do terror, raramente mostrado em actualidades de época, este filme transforma-se numa experiência violenta e inolvidável sobretudo por nos levar à consciência de si mesmo do torcionário através do corpo e da imagem, que nele despertam, viva, a memória. E a reconhecê-lo paradoxalmente como humano no inevitável plongé final. 
                     
     Na sua completa subversão de ideias feitas, mantendo-as contudo no essencial e até com novos argumentos dados pelos próprios, "O Acto de Matar" desafia honradamente a nossa bem instalada boa-consciência, mesmo na reflexão sobre a imagem do cinema saída da boca dos torcionários e usada por eles na actualidade, que assim também questiona e pensa. Um filme notável, um documentáro com consciência de si próprio que, comentado embora por belas imagens turísticas da actualidade, nos aterra e desinquieta a todos.  

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