“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 4 de março de 2012

A perversidade dos jogos

      Com a estreia de "Vigaristas de Bairro"/"Small Time Crooks" (2000) e de "A Maldição do Escorpião de Jade"/"The Curse of the Jade Scorpion" (2001), pudemos pôr em dia o nosso conhecimento dos filmes de Woody Allen. E os dois filmes emparelham muito bem na obra dele, pois ambos tratam de golpes de génio, em que o próprio cineasta surge também envolvido, como é costume, na qualidade de actor.
     "Vigaristas de Bairro" centra-se num assalto de grande vulto preparado a partir de uma pastelaria de bairro em Nova Iorque. A primeira parte gira em volta desse golpe infrutífero, em que estão envolvidos Ray Winkler/Woody Allen, um ex-presidiário, e Frenchy/Tracey Ullman, mulher daquele, que ele tem de convencer a dar cobertura ao assalto que prepara com uns amigos, Denny/Michael Rapaport, Tommy/Tony Darrow e Ben/Jon Lovitz. A intromissão de uma não muito esperta May/Elaine May, em vez de simplificar as coisas vem complicá-las, não só aí mas também depois de fracassado o golpe, quando acaba por ser a pastelaria a transformar-se num negócio lucrativo.
                                  
      Na primeira parte o filme goza de um humor que advém das características típicas de cada uma das personagens, que levam a que cada um por si e como parte de um todo se afirme, e a segunda parte mostra-nos os frustrados assaltantes como novos-ricos, com fortuna obtida a partir do mais despretensioso e lícito dos negócios. Então o filme envereda pela exploração do sucesso das personagens, sucesso obviamente mediatizado, pelo caminho da separação do casal Ray/Frenchy à medida que se envolve nos meandros da alta sociedade, em que ambos acabam por seguir rumos diferentes, ela seduzida pelo seu pigmaleão, David/Hugh Grant, ele deixado a braços com a inocente May. As peripécias multiplicam-se e passam por um novo assalto, tão audacioso como o primeiro, tão burlesco e tão fracassado como ele, e o filme acaba em tom moralista, não de um qualquer moralismo mas de um moralismo prosaico e quotidiano, à Woody Allen.
      Perpassa por este "Vigaristas de Bairro" um tom cáustico mas sereno, como não víamos no autor desde "Balas Sobre a Broadway"/"Bullets Over Broadway" (1994), e, mais que a inspiração do filme negro americano, a da comédia de costumes tal como praticada superiormente por Ernst Lubitsch. Temos, pois, neste filme um Woody Allen ao nível do seu melhor, tanto na parábola do filme como nos pequenos pormenores do enredo e nos momentos fortes de comicidade, o que tudo flui naturalmente, sem forçar o tom nem acentuar os mecanismos que fazem girar a narrativa em termos visuais e auditivos.
     Em "A Maldição do Escorpião de Jade" é já a memória do filme negro que se impõe, desde logo pela localização temporal da narrativa em 1940. C. W. Briggs/Woody Allen é um investigador que trabalha para uma companhia de seguros de Nova Iorque e que tem de enfrentar simultaneamente Betty Ann Fitzgerald/Helen Hunt, a especialista contratada para modernizar a empresa, para quem ele é um dinossauro, e uma vaga de misteriosos assaltos a ricas mansões.
      Se "O Grande Conquistador"/"Play It Again, Sam" (1972), dirigido por Herbert Ross a partir da peça do próprio Allen, era assombrado pelo "personagem" de Humphrey Bogart, agora essa inspiração surge em filigrana, como que filtrada pelo tempo e a memória, puxada ela também para o lado da comédia americana, nomeadamente através dos diálogos. Se Betty Ann se vê envolvida com o patrão, Chris Magruder/Dan Ayckroyd, C. W. é levado a confrontar-se, durante a investigação, com a jovem e atraente Laura Kensington/Charlize Theron, e desses encontros, que se tornam recontros, decorrem situações e diálogos que só têm paralelo na relação entre Betty Ann e C. W. Briggs, ou na deste com Jill/Elizabeth Berkley.
                                   
       Como é bom de ver, os misteriosos assaltos contavam com cumplicidades insuspeitadas - o investigador conclui imediatamente "It's an inside job, no question" - e o certo é que a própria evocação da época faz passar o método utilizado com perfeita naturalidade junto dos espectadores, apesar de todo o seu artifício. No final, é também com naturalidade que o feitiço se volta contra o feiticeiro, primeiro, contra a feiticeira, depois, e aí encontramos de novo a marca do cineasta no seu melhor, com o sereno angelismo dos inocentes que fazem o possível por o não ser.
       Comédia policial de época, "A Maldição do Escorpião de Jade" constitui um bom achado na obra de Woody Allen, de que permite completar o quadro multifacetado que traça de Nova Iorque, até pelo paralelo que permite estabelecer com o anterior "Através da Noite"/"Sweet and Lowdown" (1999). Com o seu recurso, múltiplo e exuberante, à palavra e com a insistente criação de contrastes entre as personagens, o cineasta prossegue uma obra que é já longa em grande estilo e a grande nível, onde todos nos habituámos a situá-lo e a reconhecê-lo. Uma obra em que a multiplicidade de contrastes entre diferentes personagens estabelece, filme a filme, uma teia de relações diversificadas, com recorrências mas sempre renovadas.
    Ao acompanhar o devir ela mesma e outra da obra de Woody Allen podemos permanentemente saber onde ele está, onde cada um de nós está e onde está o próprio cinema, cientes de que ele é um dos grandes cineastas contemporâneos, sempre autor completo dos seus próprios filmes, herdeiro e sucessor de nomes maiores da história do cinema, como John Cassavetes e Ingmar Bergman.

Dezembro 2006

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