“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 24 de março de 2012

Primeiro entre iguais


     "O Delfim" (1968) terá sido o melhor romance de José Cardoso Pires e foi um dos melhores da literatura portuguesa do século XX. "O Delfim", de Fernando Lopes (2002), é sem dúvida um dos melhores filmes não só do seu autor como do cinema português recente.
      Fernando Lopes é, juntamente com Paulo Rocha, um dos nomes fundadores do "novo cinema português" dos anos 60. Qualquer um deles não é cineasta de muitos filmes, mas são deles alguns dos melhores filmes portugueses dos últimos quarenta anos. Dos dois, Paulo Rocha sempre foi considerado mais esteta, enquanto a Fernando Lopes parecia quadrar melhor o qualificativo de mais realista.
                               
      Penso que esta ideia, um tanto espalhada, não corresponde à verdade, na medida em que Paulo Rocha, em especial nos seus primeiros filmes tem um lado realista muito evidente, e  Fernando Lopes deve o epíteto de mais realista sobretudo ao seu filme de estreia, "Belarmino" (1964), sem deixar de ter na sua obra filmes de enorme apuro estético, como "Uma Abelha na Chuva" (1971), baseado no romance homónimo de Carlos de Oliveira, "O Fio do Horizonte" (1993), baseado no romance homónimo de António Tabucchi, e agora "O Delfim". Além disso, o possível argumento de que Lopes adaptou obras de escritores neo-realistas portugueses não colhe, na medida em que Carlos de Oliveira é o mais depurado e esteta dos nossos escritores neo-realistas (veja-se a sua poesia e o peso que nela o cinema tem) e José Cardoso Pires limita-se a colher a inspiração do neo-realismo para uma obra extremamente pessoal, que é uma das mais importantes da literatura portuguesa do século XX - como aliás também acontece com a de Carlos de Oliveira. Na verdade, tanto um como outro são sobretudo criadores de espaços ficcionais que se integram no espaço físico e no tempo psicológico do nosso século XX, sem deixarem de manter traços do neo-realismo, mas sem que esses traços assumam a forma e a força dominante que têm nos grandes escritores neo-realistas portugueses, como foi o caso paradigmático de Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol.
      Feito este preâmbulo, há que dizer que para o seu filme "O Delfim" Fernando Lopes conta com um argumento perfeitamente à altura, da autoria de Vasco Pulido Valente, em que ele próprio colaborou juntamente com Maria João Seixas, e com um elenco com grandes actores no seu melhor, como Rogério Samora (com quem já trabalhara em "Matar Saudades", 1988), Alexandra Lencastre, Rui Morrison e Isabel Ruth, em especial. Tudo isto junto só podia dar origem, nas mãos de Fernando Lopes, a um grande filme, que começa por cartografar o espaço da Gafanha, o território de Tomás Palma Bravo, para de seguida nos introduzir, através da figura do narrador, no espaço físico da casa de Tomás e Mercês, que é também um espaço psicológico e se expande nas terras em redor até à lagoa, até ao mar. O brusco salto temporal para um ano depois permite cruzar tempos, sobrepor palavras e narrativas, personagens, situações e acontecimentos, que surgem como antepostos a um tempo presente o qual, por sua vez, enriquece a narrativa ao fornecer dados a respeito do que aconteceu um ano antes. Fernando Lopes revela, neste aspecto, uma mestria extraordinária que, se provém em parte do argumento e até do romance que adapta, tem muito que ver com o estilo de enunciação da narrativa que o cineasta vem desenvolvendo desde os seus primeiros filmes. Aliás, mesmo visualmente, uma certa semelhança física e em especial fisionómica entre Rui Morrison e o próprio José Cardoso Pires é muito bem explorada.
                                                          
      Mas o filme não nos dá, obviamente, apenas esse "trio de senhores", dá-nos também figuras secundárias fundamentais, como o cauteleiro, o padre, o presidente da junta, a criada, a dona da pensão, os servidores durante a consoada (com Laura Soveral em lugar de destaque para acentuar a rima com "Uma Abelha na Chuva", em que interpretava a protagonista ao lado de João Guedes - cuja filha, Paula Guedes, também aqui aparece numa breve intervenção). E dá-nos ainda grupos, o de caçadores, o de populares, o de marginais, nenhum dos membros dos quais atinge, porém, estatuto de plena individualidade como personagem, salvo Domingos, o criado de estimação, o que toma conta dos cavalos, é negro e é batido primeiro por um ex-combatente, depois pelo próprio patrão (e digo isto para sublinhar que estão em jogo relativamente poucas personagens apesar de existirem grupos característicos mas que não chegam à individualização pessoal dos seus elementos).                           
     Contudo, neste filme não apenas as personagens contam, uma vez que a câmara de Fernando Lopes quando mexe, e mexe muitas vezes, não se limita a mostrar personagens, mostra também paredes, muros vazios, com as suas anfractuosidades próprias, o tampo da mesa num plano assombroso, mostra na igreja estatuetas de santos, mostra no exterior as aves em fuga durante as caçadas, as aves em bando sobre a lagoa depois do desenlace, o que tudo rima com "Uma Abelha na Chuva", que porém desenvolve. Mas, além das aves, há os cães, negros, com os seus latidos, que acompanham o dono mesmo quando ele não está presente e o simbolizam na medida em que remetem para ele. E a música ilumina o filme, como que se transforma numa sua dimensão visual, enquanto o tratamento da fotografia, da iluminação, da cor remete ora para um mundo solar ora para um universo nocturno, em que a fronteira entre a luz e a sombra se indecide - a direcção de fotografia é de Eduardo Serra.
                                
      Deste modo, o tempo e o espaço, os acontecimentos e as personagens estabelecem uma cartografia do filme, permitem que nele circulemos nos limites que cada um deles assinala. E às tantas damos por nós a descobrir que aquela cartografia corresponde à nossa própria cartografia interior como espectadores, à cartografia do país como território, à demografia da nação como povo, e então percebemos que estamos, assombrados, diante dos fantasmas, colectivos e individuais, que nos perseguiram e perseguem ao longo da nossa história até hoje, de que o filme traça como que as linhas mestras de forma quase abstracta. Que cada uma das personagens seja como é, surge, pois, com tanta naturalidade como cada um de nós, espectadores, ser como é, tudo graças ao espantoso trabalho fílmico de Fernando Lopes, que com "O Delfim" ocupa definitivamente o seu lugar, entre os primeiros cineastas portugueses de sempre. E se o digo sem hesitar é também porque o trabalho sobre a elipse atinge aqui um dos seus melhores momentos de sempre na obra do autor e no cinema português, por forma a criar uma perfeita harmonia a partir de personagens inteiramente desarmónicas, originando uma poderosa obra trágica em inspirada forma concertante e sinfónica.
                                     
Dezembro 2006

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