“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 17 de março de 2012

Sem noite, sem sono


       O primeiro filme de Christopher Nolan a estrear entre nós, "Memento" (2000), foi uma boa surpresa e a revelação de um novo cineasta talentoso e inventivo, embora o filme possa ser considerado um "exercício de estilo" mais do que outra coisa. Mesmo assim é uma obra simpática e bem esgalhada, que não pretende ser mais do que aquilo que é nem enganar o espectador: uma vez exposto o seu programa narrativo e estético, cumpre-o com brio.
       "Insónia"/"Insomnia" (2002), inspirado no filme homónimo do norueguês Eric Skjoldbjaerg (1997),  não aspira ao que aspirava o filme anterior de Christopher Nolan no plano técnico e formal, antes transfere a sua ambição para o plano narrativo e interpretativo, o que, no entanto, de maneira nenhuma o situa abaixo daquele.
      Um certo tom de exotismo decorrente do facto de a acção se desenrolar no Alasca, num ambiente de "sol da meia-noite", não é desajustado perante a complexidade da trama urdida entre dois detectives, Will Dormer/Al Pacino e Hap Eckhart/Martin Donovan, enviados de Los Angeles para investigar o homicídio de uma jovem de 17 anos. Dir-se-ia estarmos perante aquilo que Hitchcock denominava um "whodonit", isto é, um filme em que o que interessa é descobrir a identidade do autor do crime, não se dera o caso de essa ser uma questão resolvida a meio do filme e passar a ser a morte do segundo dos mencionados detectives, não esclarecida, dúbia não obstante nos ser mostrada, a rivalizar com o outro crime, ou com a captura do respectivo autor, em importância.
                                     
      Perante a evolução dos acontecimentos e o comportamento ambíguo de Dormer, o detective sobrevivente, somos irresistivelmente remetidos para outro cineasta, outro actor e outro filme, a saber "A Sede do Mal"/"Touch of Evil", de e com Orson Welles, em que a personagem que ele interpretava, Hank Quinlan, tripudiava a lei e fabricava provas à medida dos seus interesse, como aqui acontece com Dormer, que está sob investigação interna da própria polícia. E então, sem podermos esquecer a hábil construção dramática e fílmica do cineasta, ganha todo o relevo o trabalho de Al Pacino, na pele de uma personagem à altura do seu enorme talento. Se o filme se baseia em hábeis e ágeis elipses, não evita, porém, os diálogos dramáticos e os passos solitários de Dormer na prossecussão dos seus inconfessáveis fins.
      É verdade que a réplica de Robin Williams como Walter Finch, num registo muito diferente daquele, mais ligeiro, a que nos habituou, e o desempenho sóbrio, expressivo e seguro de Hilary Swank como Ellie Burr proporcionam, juntamente com o próprio desenrolar dos acontecimentos a que assistimos, um quadro propício ao trabalho de Pacino, mas seria necessário um actor com a estatura e a estrutura física dele, capaz de fazer do rosto uma máscara inexpressiva sulcada de sentidos, do corpo o suporte de um ser complexo e atribulado, titubeante mas sempre senhor da situação, pelo menos na aparência, para nos transmitir a multiplicidade de sentidos contraditórios que percorrem Dormer, o detective sob suspeita e que, além do mais ou por isso mesmo, não consegue dormir devido à presença insistente da luz. Esta multiplicidade e complexidade da personagem, a que apenas o assassino, primeiro, a agente Ellie Burr, depois, têm acesso, explode na magnífica sequência em que o detective procura impedir que a luz continue a entrar no seu quarto e acaba por confessar à dona do hotel a causa dos seus tormentos, sequência que, aliás, se conclui sobre uma elipse extremamente apropriada e sugestiva.
                                     
      Poderemos suspeitar de que Christophar Nolan teve demasiado presente o filme citado de Orson Welles, datado de 1958 (1), mas o certo é que, se isso aconteceu, resulta em favor deste "Insónia", na medida em que procura evitar a mera repetição do esquema narrativo do filme anterior, o que se pode dizer que consegue não obstante as semelhanças não escamoteadas: a conversa gravada, o final de destruição mútua e até a alusão a uma personagem equivalente à de Tana/Marlène Dietrich.
      Mais do que um filme simpático e bem feito, com a recorrência de "flashes" do passado que não comprometem e com a boa recriação da vida na pequena cidade, "Insónia" vem confirmar Christopher Nolan como cineasta-revelação (em quem os produtores executivos, George Clooney e Steven Soderbergh, apostaram), do mesmo passo que dá a Al Pacino a oportunidade para uma nova grande interpretação, ao nível do melhor que nos tem dado, que o situa como um dos melhores, quando não mesmo o melhor actor americano da sua geração.
      "Não esqueças o teu dever", diz Dormer a Ellie antes de morrer. Para que ela perceba, apesar de tudo, e faça o que tem a fazer, aprenda o que tem a aprender com o caso dele.

Nota
(1) Filme mítico e excepcional, "A Sede do Mal" tem um Director's Cut estabelecido em 1998 por Jonathan Rosenbaum a partir dos apontamentos e da correspondência de Orson Welles.

Dezembro 2006

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