“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 30 de março de 2012

Uma animação principesca

       Quando pensamos no cinema de animação ocorrem-nos nomes como os de Walt Disney, Norman McLaren, René Laloux ou Abi Feijó. Quando pensamos no cinema japonês ocorrem-nos os nomes de clássicos (Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, Akira Kurosawa), de modernos (Nagisa Oshima, Shohei Imamura), mesmo de contemporâneos (Takeshi Kitano). Digo isto para expressar a ideia de que quando falamos de cinema de animação normalmente não lhe associamos o cinema japonês, salvo a propósito da famosa manga, no seu melhor escassamente divulgada entre nós, e quando falamos de cinema japonês não lhe associamos o cinema de animação, salvo no mesmo caso.
       Ora a estreia recente no nosso circuito comercial de "A Princesa Mononoke"/"Mononoke-hime", de Hayao Miyazaki (1997), teve o efeito muito estimulante de nos despertar para a existência de um grande mestre da animação no cinema japonês, não associado à manga. Na verdade, o filme, de uma absoluta e singularíssima beleza, só pode ser obra de um cineasta de enorme talento, tanto no domínio das técnicas da animação como no domínio da narrativa.
      Sabemos todos como o desenho animado se tornou comum nas sociedades ocidentais, associado a formas e imaginários específicos, que começaram no cinema e transitaram para a televisão sempre com grande sucesso. Com a possibilidade de acesso a este extraordinário filme de Hayao Miyazaki damo-nos conta da existência de um muito grande cineasta de animação no Japão, com um imaginário específico muito forte e uma prodigiosa criatividade formal.
                                     
      De facto, associado narrativamente a um imaginário fantástico localizado nos tempos do feudalismo, o filme humaniza os animais, animaliza os humanos, visualiza diabos e espíritos, opõe heróis e malvados, e celebra o amor, a natureza e o amor da natureza de uma forma que toca o sublime. Jogando permanentemente com a ideia de dualidades, que se opõem mas permitem esclarecer, o autor imprime ao seu filme um ritmo característico do épico, com a presença de um herói com uma missão a cumprir para se salvar a si próprio e o encontro com hordas selvagens de animais (lobos e javalis, nomeadamente), para além de duas mulheres com funções de liderança (uma das quais a princesa do título) e de figuras de transição entre o humano e o natural - isto sem esquecer o prodigioso espírito da floresta.
       Como toda a acção do filme decorre em plena natureza, grande parte do efeito dele decorre do espantoso modo como o cineasta a figura e anima, fazendo com que todos, animais, vegetais, minerais, humanos e seres improváveis como que vivam incrustados nela, dela sejam indissociáveis por dela fazerem parte. Assim, as diferentes figuras do filme constituem-se como recortes no mundo natural, de que naturalmente se individualizam mas sem deixarem de lhe pertencer. E o carácter fantástico da narrativa vem aumentar o efeito dessa imbricação entre o humano, o animal e o natural, pois integra neste também as figuras de natureza mais imediatamente fantástica, o espírito da floresta, os deuses, os diabos ou os seres improváveis.       
                                   
     Sabe-se que o cinema praticado por Miyazaki é atravessado por uma visão muito próxima da natureza. Mas uma coisa é sabê-lo por nos termos socorrido do que diz quem conhece os filmes e outra coisa é vê-los - neste caso vê-lo. É que se há um universo característico do cinema nipónico, com vários autores célebres e mundialmente famosos (para além de outros menos conhecidos, como Mikio Naruse, por exemplo), cada um deles com o seu universo pessoal, sabemos a partir de agora que há também um universo próprio da animação japonesa, pelo contacto que com ela este "A Princesa Mononoke" nos permitiu estabelecer. Um universo possuidor de um imaginário que, pelo menos neste caso, passa pela sagração da natureza, por uma concepção dela como bem supremo a preservar sempre, contra tudo e contra todos, mesmo aqueles que decapitam o espírito da floresta.
     O desenho animado em si mesmo, de um espantoso rigor de traços, de um movimento e ritmo perfeitos, de um admirável sentido das proporções e dos respectivos contrastes, como que nos obriga a recordar a pintura chinesa e japonesa de que Sergei M. Eisenstein fala nos seus escritos como fonte inspiradora do seu cinema (1). E entre os méritos maiores do filme constará, sem dúvida, o de fazer-nos quase sempre esquecer o universo pictórico para nos fazer aceder a um universo fílmico específico da animação que, embora com influências daquele, apresenta características próprias.
                                                             
        Quanto à princesa Mononoke como personagem, ela permanece rebelde e inacessível, o que justifica que o seu nome seja chamado para o título do filme. Ela que faz parte da natureza ao ponto de estar do lado dela contra os humanos, que trabalham para a destruir. Por sua vez, Ashitaka, o guerreiro, é exemplarmente valente, ao ponto de conseguir, por acção sua, fazer com que desapareçam as manchas, próprias e alheias, deixadas por animais que se metamorfosearam em diabos.
      Para já, "A Princesa Mononoke" e o seu autor, Hayao Miyazaki, passam a constar das referências indispensáveis do cinema de animação.

Nota
 (1) Cf. S. M. Eisenstein, in "La non-indifférente nature/1/2", 10/18, Union générale d'éditions, Paris, 1976/1978.

Fevereiro 2001

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