“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 17 de março de 2012

Uma inglesa no continente


      "Sob a Areia"/"Sous le sable" (2001) é o primeiro filme de François Ozon a ter estreia comercial entre nós, embora seja a quinta longa-metragem deste novo cineasta francês. O filme revela grande inteligência e sensibilidade na forma como encena o lugar do ausente para a protagonista, Marie/Charlotte Rampling, convincentemente e com todas as justificações humanas para a fantasia dela, e o fantasma de Jean/Bruno Cremer, o marido dela, dado como desaparecido.
       E, no entanto, o cineasta trata a protagonista, a que a actriz confere dimensão física e humana, como se ela fosse um ser comum numa situação comum, e não como alguém ferido por profundo trauma decorrente de se ver subitamente privada da companhia daquele com quem vivia há mais de 25 anos. Ora é dessa décalage entre o normal e o fantasmal que François Ozon se aproveita de forma admirável, quer quando acompanha Marie nos seus dias comuns, quer quando a segue nos seus fantasmas e nas suas fantasias pessoais, quer ainda quando a mostra em vias e em acto de substituir o marido ausente por outro, Vincent/Jacques Nolot. Seria preciso recuar até "Repulsa"/"Repulsion", de Roman Polanski (1965), ou "A Máscara"/"Persona", de Ingmar Bergman (1966), para depararmos no cinema com tão perfeita e convincente recriação da identidade pessoal em função da alteridade e do lugar do outro por uma subjectividade perturbada.
                                  
       Também autor do argumento, Ozon cria a personagem central como uma professora de inglês casada com um francês e residente em França, o que transmite um primeiro sintoma de deslocação, embora superado pela longa permanência em França e pela natural adaptação aos hábitos continentais. E se o filme arranca, do ponto de vista dramático, na praia, quando Jean vai tomar banho para nunca mais voltar, na praia ele termina com a teimosa busca dele por Marie contra toda a evidência que, mesmo no limite, ela se recusa a aceitar. Contudo, ela sabe, ela tem consciência de que Jean não voltará, de que ele morreu, mas uma parte dela permanece fechada às conclusões inequívocas retiradas das provas materiais, e perante elas persiste na recusa, como que numa divisão interna do Eu, da consciência.
       Se Charlotte Rampling deixa em Marie uma indelével marca pessoal, François Ozon constrói um filme com muitos e prolongados silêncios e com um grande rigor visual, para o que se serve de uma judiciosa escolha dos ângulos e da escala dos planos, que não cessam de acompanhar a protagonista nos seus contraditórios movimentos exteriores e interiores. E em vez de a fechar em casa, presa dos seus fantasmas e das suas recordações, fá-la viver uma vida tanto mais normal quanto a não afasta do convívio com os outros, o que em vez de aligeirar o lado mórbido de Marie o vem tornar mais claro. De facto, de uma relação instalada e rotineira com Jean, de que nos são dados indícios suficientes no filme, ela procura recuperar com Vincent precisamente as rotinas, como se fossem onde mais a falta daquele se faz sentir, numa tentativa, aliás, votada ao fracasso.
                                   
      Percebe-se, a este primeiro contacto com a obra de François Ozon, não só que estamos perante um cineasta muito promissor, mas também que pode existir algum fundamento na posição daqueles que defendem que, juntamente com Arnaud Desplechin, Bruno Dumont, Jacques Audiard e outros, ele forma uma nova geração em evidência no cinema francês desde os anos 90 do século passado, que tem chamado as atenções sobre si pelas melhores razões e da qual muito haverá a esperar. "Sob a Areia" confirma tanto uma coisa como a outra, até pela maneira extremamente hábil como, ao mostrar-nos o fantasma de Jean para Marie, acaba por nos pôr em contacto com o carácter fantasmal da vida dela a partir do momento em que se vê sozinha, facto para o qual a imagem e os sons do filme, nomeadamente a música, não cessam de chamar a nossa atenção.

Dezembro 2006

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