“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A voz e o corpo

    "Uma História de Amor"/Her" é a mais recente longa-metragem de Spike Jonze (2013) e confirma plenamente o gosto do cineasta pelo estranho e pelo bizarro, que o acompanha desde "Queres Ser John Malkovich?"/"Beeing John Malkovich" (1999), a sua longa-metragem de estreia que logo para o seu nome (e o do argumentista Charlie Kaufman) chamou a atenção. Agora como único argumentista além de realizador, justamente na ideia narrativa do filme reside a sua maior originalidade e o seu maior mérito.                     
                    
    Ao colocar um simples mas inspirado escrevedor de cartas alheias, Theodore/Joachin Phoenix, um homem em processo de divórcio, a falar com o sistema operativo do seu computador, Samantha/voz de Scarlett Johansson, Spike Jonze trata de maneira inteligente e sensível uma questão de ficção científica em termos muito simples e acessíveis. Para além das recorrências do passado, a amiga Amy/Amy Adams que vai seguir o mesmo percurso que ele e sobretudo a ex-mulher, Catherine/Rooney Mara, Theodore vai ter de resolver a situação nova e complicada de a voz feminina de um sistema operativo, sem corpo, se aproximar sentimentalmente dele e ele dela.
  Tratando uma questão de inteligência artificial, o cineasta confronta-se e confronta-nos com questões essenciais, talvez não tão fantasistas como isso se pensarmos no que foi o amor no romantismo, ou na necessidade de encarnar alguém, de lhe dar e reconhecer corpo para poder verdadeiramente amá-lo. Com um Joaquin Phoenix em completo controlo expressivo e a voz evocadora, maleável, perturbante mas ela também perturbada de Scarlett Johansson, o filme enrola-se e desenrola-se como se estivesse a tratar de uma questão real e perturbante, até que Samantha propõe a Theodore um corpo para a substituir, levando tão longe quanto possível aquela necessidade de encarnar.              Depois de "O Sítio das Coisas Selvagens"/"Where the Wild Things Are" (2009), Spike Jonze não deixa os seus créditos por mãos alheias e confirma-se como um cineasta muito interessante e arrojado, que joga no aparentemente inverosímil para colocar questões inteiramente pertinentes, intemporais mesmo. Movendo-se sempre a um nível cinematograficamente correcto e muito justo no tratamento da solidão moderna na grande cidade (com exteriores filmados na Califórnia mas também em Shanghai) e daquela voz que, invisível na sua proveniência detectável, vem geralmente do espaço visível do plano (o auricular de Theodore), "Uma História de Amor" é um filme irrepreensível e muito bom em que o cineasta se reafirma como um nome a ter em conta no actual panorama do cinema americano do lado da intrigante fantasia.
    A ideia  de que se pode amar o desencarnado que se imagina - mais ainda, de que esse desencarnado pode amar-nos e amar simultaneamente outros -, apesar do que é preciso um corpo para amar, mesmo hoje ou amanhã, é extremamente interessante e inspiradora, sobretudo ao ritmo dos Arcade Fire. "O passado é uma história que contamos a nós próprios" (dos diálogos do filme). Ou, em termos heraclíticos: "Uma conexão invisível é mais poderosa que uma visível".

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