Quando Charles Chaplin nasceu, em 16 de Abril de 1889, ainda o cinematógrafo não tinha sido inventado. Com uma infância pobre e atribulada na sua Londres natal, trabalhou em espectáculos de variedades e depois como actor de teatro, qualidade em que embarcou para a América. O primeiro filme em que se reconhece a sua presença data de 1914, pelo que passam este ano 100 anos sobre o início da sua actividade cinematográfica.
Começo assim esta breve referência ao maior nome da história do cinema, aquele que teve o génio de criar a grande figura universal, a figura maior que o cinema conheceu até hoje. A trocar olhares e sorrisos com as mulheres, a bater-se com os rivais e perseguidores, a tentar reagir a imprevistos, a escapulir-se ou a avançar destemido, ele criou com Charlot uma figura própria do seu tempo e do nosso, que com esse mesmo tempo, as suas personagens e situações joga para se exceder em manha, em astúcia que vencem as suas atribulações, os seus adversários e os seus azares. O trabalho pelo qual ele se impos e ficou conhecido tem tudo a ver com o próprio cinema.
A personagem de Charlot, o vagabundo, que ele criou e recriou de filme para filme durante os anos 10 e 20 do Século XX, é a única figura cinematográfica verdadeiramente universal que o cinema até hoje conheceu. Nem ingénuo nem inocente, ele soube construir-se a partir da humana condição ao nível de uma personagem shakespeariana mas trocada em miúdos traços quotidianos do século XX: humilde, desastrada, feliz e infeliz, corajosa até certo ponto, temerosa mas de um temor vencível - e só nessa medida utópica.
Ficou conhecido, não por um estilo particular de mise en scène ou de montagem, não por aspectos formais do filme mas por aquilo que para ele e nele criou por si próprio, com o seu próprio corpo, com a sua própria gestualidade e mímica inconfundível de que o traje e o andar faziam parte e em que a vivacidade do olhar, atrevido mas mutável (sentimental, brejeiro, assustado, hesitante, decidido, espantado, comovido, ensimesmado), era fundamental, sempre em réplica com os seus actores em que fazia jogar os contrastes físicos, mas no limite em luta consigo próprio, com os limites do seu próprio corpo, e por isso mesmo imitável, replicável. Tornado um fenómeno de popularidade que deu volta ao mundo, a sua personagem não foi um herói típico do cinema, antes um anti-herói com todos os traços que identificam os pobres, os desgraçados e desfavorecidos como ele foi na sua infância e adolescência, sem rejeitar as personificações nobres e poderosas, mas conferindo-lhes um tom de distância, de caricatura.
Pobre diabo apanhado, como cada um de nós, nos momentos e aspectos mais contraditórios da vida, ele traçou o seu percurso feito de humanidade ingénua e inocente como um verdadeiro aristocrata do cinema, sem se confundir ou misturar com a vulgaridade que caracterizou o cinema desde os seus inícios, embora trabalhando sobre ela e a partir dela (1). Distinguindo-se pelo ser como os outros, pelo ser comum no que de mais humano ele tem a partir de uma observação atenta do mundo, ele foi uma grande figura da nossa pequenês, da nossa reduzida dimensão robusta, que trabalhou e elevou, pois o seu vagabundo errante move-se na incerteza da nossa própria humana condição, em que não existem certezas, apenas caminhos, percursos.
Atrás das mulheres, que o fascinavam, perseguido por rivais, abraçando causas ou abraçado por elas, em luta com as máquinas, sempre desastrado nos desafios que aceitava, sempre em perda compensada nas situações em que se colocava, em perda recuperava, sempre a partir de baixo, para chegar a situações paradoxais de que saía para a linha do horizonte, para o infinito. Sempre vencido, sempre vencedor.
Tenho para mim que Buster Keaton foi um cineasta superior a Chaplin, mais completo, arrojado e subtil na construção do filme, mas Chaplin atingiu aquele ponto do génio em que, mesmo para além do cinema, nele nos reconhecemos como seres vivos que se mexem no meio do inesperado, que se volta contra eles e lhes cabe voltar em seu favor. Chaplin não foi apenas um grande cineasta, com a sua câmara observadora à distância justa perante a qual tudo decorria, foi o criador de uma personagem viva que ainda hoje nos comove e enobrece, nos perpetua e sobrevive ao falar, no tempo do cinema mudo, com gestos, olhares e acções em situações precisas (2).
Autor completo dos seus filmes, incluindo a música, começou com filmes curtos e foi aumentando a sua duração ainda antes da chegada do sonoro, ao qual, como se sabe, resistiu muito. Comparativamente, há um génio chaplinesco intuitivo e espontâneo, típico dos seus inícios em que se situa talvez o seu melhor, depurado nos filmes mudos mais longos e já transformado nos sonoros, mais tomados pelo sentimentalismo e o humanismo do que pela espontaneidade, com os quais culminou a sua obra e a que ainda é muito associado por aqueles que não conhecem ou subestimam os seus filmes iniciais. O único filme que realizou sem ter interpretado, "Opinião Pública"/"A Woman of Paris" (1923), é um dos melhores filmes de todo o cinema mudo e de toda a história do cinema.
Ver ainda hoje um filme ou uma série de filmes seus continua a ser um enorme prazer e uma forma livre de nos conhecermos melhor e conhecermos melhor o mundo em que vivemos. Não sei de quem tenha feito mais no cinema e pelo cinema, e cujos filmes mereçam maior divulgação. Ele foi superior ao cinema, que elevou ao seu próprio nível, e assim exaltou, glorificou. Se quisermos encontrar-nos, descobrir-nos, mesmo que não o queiramos estamos ali.
É imperioso que a presente efeméride seja marcada em todo o mundo pelo regresso dos filmes de Charles Chaplin ao convívio de todos, de todas as idades, para que ele continue a ser alvo do reconhecimento que merece e a ajudar-nos a todos a sermos um pouco melhores, a vivermos um pouco melhor. Um reconhecimento que deve abranger os estudos que merece que prossigam sobre o seu génio pessoal e a sua obra (3).
Nota
(1) Por isso mesmo criou em 1919, com David W. Griffith, Mary Pickford e Douglas Fairbanks, a United Artists, como garantia de produção independente.
(2) E foi possível vê-los juntos no final de "Luzes da Ribalta"/"Limelight" (1953) de Chaplin.
(3) Na bibliografia recente sobre Charles Chaplin disponível em português devo destacar "Chaplin - Os Primeiros Anos", de Stephen Weissman (Lisboa, Bizâncio, 2012), que proporciona uma abordagem biográfica e psicanalítica, até agora inédita, do grande cineasta-actor.
Autor completo dos seus filmes, incluindo a música, começou com filmes curtos e foi aumentando a sua duração ainda antes da chegada do sonoro, ao qual, como se sabe, resistiu muito. Comparativamente, há um génio chaplinesco intuitivo e espontâneo, típico dos seus inícios em que se situa talvez o seu melhor, depurado nos filmes mudos mais longos e já transformado nos sonoros, mais tomados pelo sentimentalismo e o humanismo do que pela espontaneidade, com os quais culminou a sua obra e a que ainda é muito associado por aqueles que não conhecem ou subestimam os seus filmes iniciais. O único filme que realizou sem ter interpretado, "Opinião Pública"/"A Woman of Paris" (1923), é um dos melhores filmes de todo o cinema mudo e de toda a história do cinema.
Ver ainda hoje um filme ou uma série de filmes seus continua a ser um enorme prazer e uma forma livre de nos conhecermos melhor e conhecermos melhor o mundo em que vivemos. Não sei de quem tenha feito mais no cinema e pelo cinema, e cujos filmes mereçam maior divulgação. Ele foi superior ao cinema, que elevou ao seu próprio nível, e assim exaltou, glorificou. Se quisermos encontrar-nos, descobrir-nos, mesmo que não o queiramos estamos ali.
É imperioso que a presente efeméride seja marcada em todo o mundo pelo regresso dos filmes de Charles Chaplin ao convívio de todos, de todas as idades, para que ele continue a ser alvo do reconhecimento que merece e a ajudar-nos a todos a sermos um pouco melhores, a vivermos um pouco melhor. Um reconhecimento que deve abranger os estudos que merece que prossigam sobre o seu génio pessoal e a sua obra (3).
Nota
(1) Por isso mesmo criou em 1919, com David W. Griffith, Mary Pickford e Douglas Fairbanks, a United Artists, como garantia de produção independente.
(2) E foi possível vê-los juntos no final de "Luzes da Ribalta"/"Limelight" (1953) de Chaplin.
(3) Na bibliografia recente sobre Charles Chaplin disponível em português devo destacar "Chaplin - Os Primeiros Anos", de Stephen Weissman (Lisboa, Bizâncio, 2012), que proporciona uma abordagem biográfica e psicanalítica, até agora inédita, do grande cineasta-actor.
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