“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Implacável

    Depois de "Melancolia"/"Melancholia" (2011), que me tinha desiludido na sua grandiloquência apocalíptica, Lars von Trier faz um regresso em grande com "Ninfomaníaca - Vol. 1 e Vol. 2"/"Nymphomaniac: Vol. I & Vol.II" (2013), um filme em duas partes que constituem, cada uma delas, um filme diferente. 
                                                             
   "Nimphomaniaca - Vol. 1" centra-se na narração por Joe/Charlotte Gainsbourg da sua vida sexual agitada desde idade precoce a Seligman/Stellan Skarsgâr, alguém que a recolheu depois de um "acidente" violento, que não é mostrado, de que ela foi vítima. Essa vida sexual, tal como o próprio filme, está dividida capítulos, cada um deles com um título que corresponde a fases e personagens diferentes. Este esquema funciona bem, com os regressos ao presente da narrativa para introdução de cada capítulo e para comentários.
   Não havendo nada de verdadeiramente surpreendente na narrativa de Joe, excepto a parte relativa ao final da vida do seu pai, apropriadamente dada em preto e branco que contrasta com a cor suja dos outros capítulos, vai ser no final que o seu auditor introduz os números de Fibonacci, a "divina proporção" e Bach, o que sugere um contraste sagrado-profano muito curioso sem que nele o cineasta se demore excessivamente, embora a ele regresse em especial no início do Vol. 2 - um contraste que acaba, porém, por se revelar uma pista inconsequente.
                     ninfo11
     Alguma coisa no tom clínico e frio desta primeira parte faz-me recordar os filmes iniciais de Lars von Trier, com uma secura que contradiz o aparente calor da narrativa de Joe e a faz passar por um caso, mais um caso clínico - o interlocutor de Joe faz o papel do psicanalista. Além disso, as diferentes actrizes que interpretam Joe mais nova dão um carácter mais livre e sugestivo à personagem e ao filme. O mérito do cineasta, argumentista e realizador, é aqui indiscutível, mesmo se aquilo que encena é, em primeiro lugar, ele próprio, com as suas obsessões pessoais (sobre Lars von Trier, ver "Uma luz nas trevas", 24 de Março de 2012).                 
    "Ninfomaníaca - Vol. 2" é um filme melhor porque mais difícil e decisivo, pois enfrenta o impasse da vida sexual de Joe em todas as consequências que o acompanham.  Dividido em menos capítulos que o anterior, embora cada um deles continue a ter um título, parte de uma "visão" dela e leva-nos, já com a própria Charlotte Gainsbourg como Joe, primeiro à sua fase de "perversão" e de abandono do lar, que replica o abandono da família por um dos seus pares no primeiro filme, depois à sua recusa em declarar-se sex-addict, a seguir a uma sua "integração profissional" e finalmente à escolha e instrução de uma sua sucessora. 
                      
      Ora aqui Lars von Trier abandona o tom clínico do primeiro filme e assume decididamente com Joe a crítica radical da sociedade, num tom convincente que ela, depois de ter regressado ao ponto de partida onde fora encontrada, já com o que lhe acontecera presente, leva até ao fim. Uma personagem que não procura o amor, apenas o sexo e o prazer sexual, de que faz o seu objectivo, sem escape, sem culpa, desculpa ou tábua de salvação - ambivalente, a árvore seca e nua surge como mero pretexto interior para quem, no seu negrume obsessivo que replica o do cineasta, não procura uma saída, que não se acredita que tenha. 
     Desse modo, integrando bem as observações que se pretendem esclarecedoras de Seligman e com uma música que mistura o clássico e o moderno, o filme assume uma violência sem contemplações para ninguém, nem para Joe nem para o seu paciente e tranquilizador auditor - ali não há redenção, humanismo salvador, em que Joe como o cineasta não acredita e Seligman, com tudo o que de conformista representa, não merece.
     Sem prejuízo dos outros actores, mesmo das actrizes que interpretam a protagonista quando mais nova, devo dizer que Charlotte Gainsboroug está extraordinária como Joe, um papel difícil e ingrato que ela agarra de forma brilhante e a confirma como uma das melhores actrizes europeias da actualidade, sempre de uma grande coragem e notável generosidade como mulher. 
                    
      Quanto a Lars von Trier, que tem uma obra muito interessante, desigual mas coerente atrás de si, ele redime-se aqui de fragilidades anteriores e oferece-nos o melhor do seu talento, com uma personagem extrema que, além de se expor detida, despudoradamente na narração da sua própria vida, origina a revelação da verdade dos que a rodeiam, levando o tom ferozmente crítico do filme até ao fim, à semelhança do que tanto Thomas Vinterberg, outro subscritor do Dogma 95, como ele próprio vêm fazendo. 
     Podem acusá-lo de provocador, não de complacente, e este filme, com as suas alusões "politicamente incorrectas", usa o registo pornográfico de forma crítica, radicalmente crítica, o que, não haja confusões, deve ser levado a seu favor num mundo permissivo mas instalado no seu modo de vida conformista, nos seus compromissos, interditos, recalcamentos e frustrações, que ele, usando o cinema e a sua memória (as alusões ao seu passado, remoto e recente), com toda a legitimidade e com brio cinematográfico desafia. A inscrição inicial de ambos os filmes, em vez de deles o afastar mais os torna reconhecivelmente seus.

Sem comentários:

Enviar um comentário