“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um homem sombrio

     Pontualmente, como num ritual destinado a matar o vício e a curiosidade dos espectadores, chegou-nos o mais recente filme de Woody Allen, "Homem Irracional"/"Irrational Man" (2015), um filme muito curioso e cheio de diálogos, com duas vozes off narrativas.
    Com a  variedade de grandes actores em pequenos ou grandes papéis nos filmes dele, pergunta-se sempre quem ainda não entrou em nenhum para criar expectativa. Calhou desta vez ser Joaquin Phoenix, uma escolha excelente para Abe, um professor de filosofia e filósofo sombrio, segundo o cliché da profissão e da actividade.  
                   
     A questão que se coloca no filme é também a do costume nessas circunstâncias, ou seja, a de uma aluna, Jill/Emma Stone (actriz que reincide depois de "Magia ao Luar", 2014), que se apaixona pelo professor que vive uma crise existencial e se entrega ao alcool. Com o seu físico e a sua expressividade, Joaquin Phoenix dá-nos um Abe que procura os limites da existência e da sua afirmação como ser humano, partindo da sombra para atingir alguma claridade a partir do momento em que consegue ter sexo com uma mulher, o que não lhe acontecia há um ano.
     Mas tudo isto rodeia a decisão de Abe de, sem ninguém saber, eliminar, envenenando-o, um homem que ele casualmente fica a saber estar a fazer mal aos outros no exercíciio da sua profissão de juiz de família. E aqui saltamos logo para "A Corda"/"Rope", de Alfred Hitchcock (1948), um filme que, justamente com um antigo professor e dois ex-alunos seus, levantava essa questão, a da "legitimidade de matar", embora seja sobretudo recordado pela sua filmagem num único cenário e num único plano-sequência. A diferença está em que aqui a aluna, Jill, quando descobre o que Abe fez e este lho confessa, ameaça denunciá-lo se ele não se entregar voluntariamente à polícia.
                     irrationalman
      Correndo ligeiro ao sabor do ritmo imposto pelos seus dois narradores off, "Homem Irracional" dedica-se a jogos filosóficos, conduzidos pelo mestre, que acaba por se deparar com os limites paradoxais dos seus actos: a fundamentação filosófica ou moral de um crime é em geral muito complicada e leva normalmente ao absurdo, o que aqui uma vez mais acontece. Que o cineasta tenha abordado esta questão neste filme, como sempre com argumento seu, revela-se muito oportuno num momento em que, nos Estados Unidos em especial, se mata tanto e com tanta facilidade.
     Sem grandes complicações formais e com boas ideias narrativas (o parque de diversões, a lanterna), Woody Allen cumpre com aprumo aquilo a que está obrigado e a que nos habituou: mais um filme por ano. Evidentemente que o mal de vivre de Abe é sem remédio, os seus actos são sem regresso e a razão, em especial quando jovem, acaba por impor-se contra ele. Ainda bem que assim acontece.
                     Emma Stone and Joaquin Phoenix in "Irrational Man"
        "Homem Irracional" é um filme bom e desembaraçado, em que Woody Allen mantém o bom gosto e a elegância a que nos habituou, uma pequena jóia, discreta e sombria, na sua obra, cumprindo bem a sua função de parábola dostoievskiana demonstrativa, excessivamente demonstrativa mesmo, para o meu gosto - e nesse excesso está o seu maior limite. Por sua vez, o encontro entre Joaquin Phoenix e Emma Stone funciona muito bem e marca uma data neste filme.   
        (Sobre o cineasta, ver "Um americano em Paris", de 12 de Agosto de 2012, "Blue Moon", de 21 de Setembro de 2013, e "O dom e o sinal", de 13 de Setembro de 2014).       

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