“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Um caso muito sério - 1

     O primeiro volume de "As Mil e Uma Noites", de Miguel Gomes (2015), intitulado "O Inquieto", introduz-nos numa saga de que não conheço ainda os dois volumes seguintes. Perplexo e expectante perante a vastidão do projecto, apesar do bom cruzamento entre documentário e ficção, já utilizado pelo autor em "Aquele Querido Mês de Agosto" (2008), este início deixa-me também apreensivo e insatisfeito, o que me leva a colocar-lhe algumas questões.
     Embora a introdução do cineasta em fuga seja muito boa e fundamental para entender o que se segue, filmar portugueses em crise durante o auge dela surge como um projecto generoso mas com o seu quê de diletante: porquê aqueles e não outros? sobretudo porquê aflorar questões avulsas sem aprofundar nenhuma delas? porquê um retrato tão inócuo dos governantes e outros responsáveis - embora eu reconheça que a caricatura que deles traça se destina a tornar-se compreensível para o comum dos espectadores? 
    As questões podiam suceder-se, pois o tom de encantamento que percorre este primeiro volume de "As Mil e Uma Noites" não ilude que há naquele material pontas de iceberg que interessaria trazer à superfície mesmo que em muito menos tempo que o total deste primeiro volume, o que o realizador, também argumentista com Telmo Churro e Mariana Ricardo, porque não é ingénuo sabe e faz com que fiquem como alertas para os espectadores e outros cineastas portugueses eventualmente interessados.
                    Miguel Gomes entre o vivido e o imaginado
        Mas o projecto de Miguel Gomes não foi esse, antes o de apresentar apesar de tudo uma imagem aceitável, diria mesmo patriótica do país e uma imagem ainda mais melhorada de si próprio como cineasta, para consumo interno e sobretudo externo - propósito legítimo, a que nada tenho a objectar e que, pelo que tenho podido apreciar, parece ter sido atingido, e ainda bem.
       Colocadas liminarmente estas objecções, o filme em si mesmo desenrola-se em termos acessíveis e com algum encanto que a fantasia ajuda a estabelecer, em que o episódio menor dos políticos e afins, na sua malícia a traço grosso mais eficiente, se integra bem. Ali está gente que foi explorada toda a vida e no momento das filmagens, 2013-2014, mais o foi ainda, ali está gente que sofreu, lutou, se debateu, e a amostra escolhida revela-se significativa. Uma vez introduzido o registo de Sherazade havia lugar para isso e para muito mais, para o que teremos que esperar pelos filmes seguintes da trilogia. 
        Não se nega, pois, antes se reconhece a este primeiro volume de "As Mil e Uma Noites" o mérito de dar rostos e vozes à crise, tirando-a do espaço quase abstracto para que o discurso político e a comunicção social a remeteram. Se esse era o objectivo principal é muito louvável e plenamente atingido, com dignidade e um enquadramento que o torna compreensível, num tom que chega a todos, o que no caso se impunha - também com a participação de grandes actores, como Adriano Luz, Rogério Samora, Maria Rueff, Diogo Dória. 
                   
      Mas no seu todo este "Volume 1, O Inquieto" deixa tudo como estava: não belisca seriamente ninguém ao nível que seria exigível (o que também permite compreender o unanimismo estabelecido a seu respeito), é superficial e mundano ("já viste o último filme do Miguel Gomes?"), o que se compreende e não lhe fica mal.      
     Agora deixar de fora ou definir por exclusão de partes os responsáveis pela crise parece-me leviandade, não usar de uma maior malícia uma oportunidade também ela perdida - o tom de encantamento estabelecido esquece a malandragem que impunemente há muito parasita e encrava o sistema de que se alimenta, sem assumir o tom abertamente malicioso que, por exemplo, João César Monteiro, que contudo penso teria apreciado pelo menos "a beleza do gesto", tinha, mas revelando-se devedor dele: tudo é fruto da imaginação de um cineasta em fuga. Mas esperemos pelos filmes seguintes.
                   Quando o cinema fala do nosso aqui e agora
       Evidentemente que aconselho sem restrições este filme e reservo a minha opinião final para o seu todo, quando o tiver visto: "Volume 2, O Desolado"; "Volume 3, O Encantado". Às minhas objecções supra poderá dar-se a resposta de que "o que é preciso animar a malta" e perante ela eu posso concordar que esse é um objectivo atingido por este "O Inquieto" - em excesso mesmo, com multidão, bandeira e hino no final. 
       Apesar de tudo mantenho a confiança - no filme no seu todo, entenda-se - porque o seu autor é um cineasta em crescimento, não apaziguado e inventivo, com muito boas provas dadas e que não se deixa abater (sobre Miguel Gomes ver "Festas de Verão", de 15 de Janeiro de 2012, e "Amores perfeitos", de 29 de Abril de 2012).     

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