“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Um caso muito sério - 2

    O segundo volume da "As Mil e Uma Noites" de Miguel Gomes, "O Desolado" esclarece melhor o filme que, no seu volume primeiro, "O Inquieto", vagabundeava entre o documentário e a ficção, sempre a partir de notícias da imprensa da época, entre 2013 e 2014, em Portugal, como se sabe porque o cineasta não se tem cansado de o dizer e repetir.
    Menos ligado a uma realidade documental, que nele só vagamente está presente, "O Desolado" constrói nas suas três partes uma realidade mais real do que a própria realidade, valendo-se da ficcionalização para mais expeditamente dar conta do que está em causa: um país em crise. E de forma de tal maneira feliz o consegue que o que nos apresenta é (acaba por ser) a crise permanente de um país que sem ela não se reconhece. 
                    "As Mil e uma Noites" (2015)_3
    O primeiro espisódio, dito de "Simão Sem Tripas", resolve-se com um homem solitário e a monte que transporta consigo a queixa generalizada dos portugueses de só arranjar mulheres que lhe dão cabo do juízo. O actor, Chico Chapas, é um achado e todo o episódio flui em espaço aberto, a montanha, e em tempo dilatado, cinematograficamente justo. 
    O segundo episódio, "As Lágrimas da Juíza", desenvolve-o muito bem ao esclarecer sobre o excesso de sentido que da falta dele resulta numa sucessão de deixas patéticas e aparentemente desligadas que, no grotesco agridoce das suas personagens, na sua falta de sentido constroem, num espaço fechado de anfiteatro ao ar livre, simultaneamente tribunal e teatro, um sentido maior a partir de dados imediatos da realidade - delicioso o "detector de mentiras" de Manuel Mozos. 
    O terceiro episódio, "Os Donos de Dixie", remete-nos para o subúrbio em que todos vivemos, entre vizinhanças que se desconhecem, problemas que se partilham, desesperos e imagens dúplices da realidade. A banalização da crise surge-nos, assim, como a crise banal de um país banal que no seu quotidiano se debate e tenta transcender-se sobrevivendo a todo o custo. 
                     "As Mil e Uma Noites, Volume 2: O Desolado" vai representar Portugal nos Oscars 2016
       Neste "O Desejado" pode estar, pois, o mais esclaredor e melhor desenvolvido de "As Mil e Uma Noites", de cujo projecto de facto não fazem senão marginalmente parte o documentário ou falar das causas e dos responsáveis da crise mas desta em vias de se desenrolar em nossa volta, connosco incluídos. Com um muito bom tratamento do plano e do fora de campo e um entendimento sagaz do tempo, este segundo volume constrói-se sobre narrativas múltiplas, três, cada uma das quais se vai subdividindo em outras, mais breves micro-narrativas.
       Se o cinema devia uma resposta à famigerada crise ela está em "As Mil e Uma Noites" de Miguel Gomes ao falar do absurdo que se agrava com ela num país de gente rude e complicada que, sem ser má, no seu orgulho é muito dada ao contrasenso, ao engano, ao diálogo de surdos e ao conflito. A plena entrega dos actores, com destaque para Margarida Carpinteiro, Luísa Cruz, de novo Adriano Luz, José Manuel Mendes, Teresa Madruga e João Pedro Bénard, estabelece num patamar de crença o que aparece como mais banal, que o jogo do cineasta com os sentidos múltiplos exponencializa e acrescenta - como o duplo Dixie no final esclarece.  
                     As Mil e Uma Noites- Volume 2, O Desolado (2015) de Miguel Gomes
    Inesperado apesar de tudo depois de "Aquele Querido Mês de Agosto" (2008) e "Tabu" (2012), este filme em forma de tríptico surge como apoteose do talento do seu autor: com todos os ingredientes banais e corriqueiros transfigurados por forma a com eles e sobre eles criar um grande filme visionário sobre um país difícil, que se desconhece a si próprio, quando atravessa dificuldades maiores que lhe permitem, talvez, conhecer-se melhor.
   A estreia por partes faz todo o sentido neste caso. Vamos ver o que nos espera em "O Encantado", o terceiro volume deste "As Mil e Uma Noites", que nos seus dois primeiros volumes nos dá grande cinema.

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