“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 27 de fevereiro de 2016

A palavra que falta

     "Salve, César!"/"Hail, Caeser!", o mais recente filme dos irmãos Joel e Ethan Coen (2016), é mais uma exuberante manifestação do seu superior talento.
    De regresso à comédia inteligente sobre a estupidez dos americanos, em que deram anteriormente grandes provas em especial em "O Grande Salto"/"The Hudsucker Proxy" (1994), "O Grande Lebowski"/"The Big Lebowski" (1998), "Irmão, Onde Estás?"/"Oh Brother, Where Art Thou?" (2000), "Destruir Depois de Ler"/"Burn After Reading" (2008) (embora ela atravesse quase todos os seus filmes), o filme leva-nos aos anos 50 e à era do macarthismo em Hollywood sob a forma, muito apropriada, de filme negro, cuja estética é muito bem explorada formalmente.
                    
    "Salve, César!" começa e acaba, com epílogo, num confessionário, que Eddie Mannix, o protagonista, homem de confiança dos estúdios interpretado por Josh Brolin, frequenta (duas vezes no intervalo de 27 horas) fundamentalmente por não estar a conseguir deixar de fumar como prometeu à sua mulher, e ele é o centro em volta do qual se desenrolam filmes, actores, actrizes, realizadores, enfim o mundo do cinema.
     E este filme dos Coen é especialmente notável por nos levar ao interior do mundo do cinema, com referências dispersas ao próprio cinema americano que só o espectador mais conhecedor poderá acompanhar (não, não vos digo nada, descubram cada um por si), numa estratégia intertextual que o aproxima do Jean-Luc Godard dos anos 60 do Século XX, em especial de "O Desprezo"/"Le mépris" (1963).
                     hail caesar
     Também autores do argumento, como costuma acontecer nos seus filmes, os dois irmãos seguem os estereótipos da época, da opinião dos líderes religiosos sobre um filme da vida de Cristo aos conspiradores e raptores argumentistas comunistas, com nomes (o cão Engels é fantástico) e submarino e tudo. Pelo meio a filmagem de um filme de sereias com DeeAnna Moran/Scarlett Johansson, actriz grávida à procura de pai, de um melodrama em que um actor de western, Hobie Doyle/Alden Ehrenreich, tem dificuldade em articular correctamente o inglês como lhe pede o realizador, Laurence Laurentz/Ralph Fiennes, e de um musical com marinheiros à maneira de Stanley Donen e Gene Kelly.        
      O ponto do delírio cómico é atingido pela técnica de montagem que é enlaçada pelo pescoço, estrangulada pelo material com que trabalha na sala de montagem, o que (além de lembrar Dziga Vertov) fará o encanto Thelma Schoonmaker. Com actores fabulosos cada um deles no registo certo, de que apreciei George Clooney e Tilda Swinton em especial, ela num duplo papel, "Salve, César!" é um filme inteligente como os Coen nos habituaram sobre uma questão sensível vista do lado da ironia e do humor em que são mestres.   
                     HC - Footage 2
     Com este "Salve, César!" percebe-se melhor a incursão de Joel e Ethan Coen pelo argumento para "A Ponte dos Espiões"/"Bridge of Spies", de Steven Spielberg, 2015 (ver "Dois por um", de 10 de Janeiro de 2016). Em França Claude Chabrol tratou com grande pertinência, no seu tempo, a "bêtise", no tempo deles os Coen tratam também superiormente a "estupidez", e é aqui notável sobretudo, repito, a recuperação do estilo do filme negro em favor de uma declaração final de (a palavra que falta ao actor Baird Whitlock/George Clooney na sua fala final perante a cruz) no cinema, ingénua e cómica na sua própria ingenuidade contra outro negócio, o da aviação (sobre os dois irmãos ver "Encontro fatal", de 20 de Janeiro de 2012, e "Uma boa surpresa", de 26 de Dezembro de 2013).
                    

     Nota
   Sobre os Coen aconselho "Ethan and Joel Coen", de Ian Nathan (Paris: Cahiers du Cinéma/Masters of cinema, em inglês, 2012) e "Oh Brothers! - Sur la piste des frères Coen", de Marc Cerisuelo e Claire Debru (Paris: Capricci, 2013) na bibliografia mais recente.

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