A longa-metragem de estreia do húngaro László Nemes, "O Filho de Saul"/"Saul fia" (2015), trata com grande dignidade e todo o respeito o drama de um Sonderkommando do complexo Auschwitz-Birkenau em 1944, o húngaro Saul Ausländer/Géza Röhrig, que por entre o seu violento e terrível trabalho de transportar as cinzas e os despojos das vítimas do Holocausto do crematório para a fossa e recolher os seus pertences encontra tempo e disposição firme para querer enterrar condignamente uma criança que toma por seu filho.
Mantendo grande proximidade em relação ao protagonista e àqueles que com ele trabalham, submetidos ao comando e controlo dos senhores nazis do campo e do seu destino, fechando o espaço verdadeiramente concentracionário este filme consegue ser um testemunho humano muito bom, tanto mais quanto se sabe que membros como Saul da mesma força, judeus como os outros e como eles destinados à morte, fizeram o relato escrito da sua vida ali, o que constitui peça importante para a presente reconstituição e a faz valer como mais do que isso.
Sem em caso algum embelezar ou de qualquer outra maneira contemporizar com o horror absoluto (nunca há o contracampo dos carrascos), nem mostrar a morte a ser dada, antes fragmentos do antes e do depois (corpos nus vivos e corpos nus mortos, à distância), Lázsló Nemes mantém um pulso firme na composição dos planos, quadro e iluminação (fotografia de Mátyás Erdély), e na representação dos actores, todos notáveis com especial destaque para Géza Röhrig, um poeta húngaro a viver nos Estados Unidos, portanto um não-profissional. Tudo aquilo que é mostrado e que os sons provenientes do fora de campo torna ainda mais negro e soturno é terrível, final, sem recuo ou escapatória, como o fim do filme confirma também relativamente àqueles que tentam a fuga, episódio real de 1944.
As poucas imagens de Auschwitz e dos outros campos de concentração e de extermínio do Holocausto como representações do irrepresentável foram exaustivamente estudadas por Georges-Didi Huberman em "Images malgré tout" (Paris: Les Éditions de Miniuit, 2003), um texto que se tornou célebre no percurso deste notável historiador, filósofo e antropólogo das imagens, nomeadamente da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema, que mereceu um importante desenvolvimento em "O Inimaginável: leituras dos corpos e das suas imagens - Reflexões em torno de quatro imagens distantes", de Jorge Leandro Rosa (in revista NADA, nº 12 - Lisboa: 2008, páginas 110-123).
Com o passar do tempo e dos filmes, incluindo, desde "Noite e Nevoeiro"/"Nuit et Brouillard", de Alain Resnais (1955), os de Claude Lanzman e de Steven Spielberg, a questão proporcionou um tratamento sério e rigoroso, que desde logo impôs a Lázslé Nemes respeitar todos os protocolos para que nada fosse deixado ao acaso ou à pura especulação. Obra de ficção com largo apoio nos factos reais (argumento de Lázsló Nemes e Clara Royer), "O Filho de Saul" é um filme que é preciso ver todo e de frente, de olhos secos como o documentário possível que consegue ser, com a inclusão do fotógrafo no interior do campo.
Para o final os planos, desde o início com largo recurso à desfocagem dos fundos, vão-se tornando mais longos, embora com largo recurso aos movimentos de câmara, e por isso menos numerosos, para acabar numa imagem vazia, sobre um espaço vazio, sobre o qual ressoam os disparos provenientes do fora de campo, inequívocos. Além desta, a grande audácia do filme é mostrar um corpo de criança ainda vivo, aliás por pouco mais tempo.
Filmado em 35mm com uma objectiva de 40mm, "O Filho de Saul" de Lázsló Nemes representa uma viagem ao coração do horror absoluto, que o seu carácter ficcional torna mais terrível, absurdamente inumano. Mas do mesmo Georges-Didi Huberman sobre ele saiu no final do ano passado "Sortir du noir" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2015), que aqui devo vivamente recomendar. (Sobre o cinema húngaro, ver "Nas trevas interiores", de 29 de Junho de 2012, e "O bom ponto de vista", de 11 de Setembro de 2013. Sobre o Holocausto, ver "A cidade de ficção", de 27 de Dezembro de 2015).
Filmado em 35mm com uma objectiva de 40mm, "O Filho de Saul" de Lázsló Nemes representa uma viagem ao coração do horror absoluto, que o seu carácter ficcional torna mais terrível, absurdamente inumano. Mas do mesmo Georges-Didi Huberman sobre ele saiu no final do ano passado "Sortir du noir" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2015), que aqui devo vivamente recomendar. (Sobre o cinema húngaro, ver "Nas trevas interiores", de 29 de Junho de 2012, e "O bom ponto de vista", de 11 de Setembro de 2013. Sobre o Holocausto, ver "A cidade de ficção", de 27 de Dezembro de 2015).
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