“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Um sonho mudo

    Datado de 1938, "Demasiado Johnson"/"Too Much Johnson" de Orson Welles, resgatado do esquecimento em 2013 e que só agora vi em edição dvd, terá sido feito para, em fórmula de três prólogos, passar com a peça de teatro com o mesmo título de William Gillette, de que desconheço tudo. Atenho-me por isso ao filme.
                     Joseph Cotten in "Too Much Johnson"
      Com a forma notável para a época de filme mudo, "Demasiado Johnson" conta com argumento do próprio Welles, embora a sua narrativa seja dificilmente perceptível fora dos desastres dignos do burlesco mudo em que se vê envolvido um muito jovem Joseph Cotten como Augustus Billings, perseguido por amante de uma mulher casada. Mas o que é mais curioso é que tudo neste filme remete para o tempo do mudo, anos 10/20 do Século XX, do vestuário aos adereços. Como num Chaplin ou num Buñuel mudo, com rasto visível dos keystone cops, um dos quais interpretado pelo próprio Orson.
        Na primeira parte, passada na cidade, há referências retidas para o futuro, da profundidade de campo em exteriores ao plongé/contra-plongé funcional, passando pelos montes de caixas, caixotes e gaiolas, mas o que aí surpreende mais é uma arquitectónica excepcional e excepcionalmente aproveitada. Na segunda parte tudo se passa noutros locais, entre o mar e o porto, o deserto e a montanha, notando-se pelo meio um singular jogo de chapéus e no final o regresso de Cotten com um chapéu de chuva.
                   
       Feitas as contas, este filme felizmente redescoberto mostra bem, pelo seu ano de produção, ser anterior a "Cavalgada Heróica"/"Stagecoach", de John Ford (1939), que o génio aqui em incubação dizia ter visto inúmeras vezes antes de fazer "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941), que também interpretou e foi a sua estreia oficial no cinema. É mesmo isso que me leva a escrever isto, embora tudo o que seja de Orson Welles me interesse (ver Génio de Orson Welles", de 10 de Julho de 2015, e "Poética de Orson Welles", de 30 de Outubro de 2015).
      Aproveito para chamar a vossa atenção para o que, em contexto, escreve com toda a razão Marie-José Mondzain sobre "O Mundo a Seus Pés" e Orson Welles no final do seu "Homo spectator - ver, fazer ver" (edição portuguesa Lisboa: Orfeu Negro, 2015, páginas 335-366), que aqui de novo aconselho. O filme dizem-me estar disponível na internet, tal como a curta "The Hearts of Age", também muda, que sobre argumento próprio ele co-realizou com Wlliam Vance em 1934.
                   
      Que os filmes que jovem prodígio fez antes do célebre "Citizen Kane" fossem mudos deve ser igualmente atendido e sublinhado, pois o faz recuar no tempo e faz o cinema mudo avançar mais 10 anos, como Jean-Luc Godard disse já teria sido preferível acontecer para o próprio cinema.

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