“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 7 de outubro de 2012

A meio do caminho

           O último filme de Woody Allen, "Para Roma, com Amor"/"For Rome with Love" (2012), é mais um filme da série que o cineasta-actor resolveu dedicar a grandes e famosas cidades europeias nos últimos anos, desde 2005. O projecto pode ser visto em si mesmo como curioso, até original, mas isso não impede que incorra no risco de transformar cada filme num apressado postal turístico, um risco já presente em "Vicky Cristina Barcelona" (2008) que aqui abertamente se declara.
                     
         A opção por um filme em episódios não tem, em si mesma, nada de especialmente favorável ou contrário, mas a forma como o cineasta o investe não lhe permite aprofundar personagens nem situações e leva-o a criar meros clichés, que como tal ele trabalha. O homem entre duas amigas já por ele fora tratado muito melhor em "Vicky Cristina Barcelona" e nem Penélope Cruz salva o seu episódio, ou o filme, pois ali pensamos imediatamente no que sobre o assunto fez Billy Wilder, na América mas também em Itália - "Avanti!" (1972) -, e até no que anteriormente fez já o próprio Woody Allen - "Poderosa Afrodite"/"Mighty Aphrodite" (1995), por exemplo.
            Evidentemente que o filme tem apontamentos saborosos e bons momentos, em especial no episódio do cantor de ópera que só canta no chuveiro, em que o próprio Woody Allen intervém com inteligente auto-ironia, mas de resto resume-se a pouco mais do que lugares-comuns: monumentos, referências ao cinema e à comédia italiana, a católicos e arquitectos em cópia conforme, numa paródia sem uma linha de rumo definida, morna, sem frescura nem novidade, o que o torna um Woody Allen menor.
                      To Rome With Love
         O trabalho sobre o cliché no cinema americano do pós-guerra é identificado por Gilles Deleuze em cineastas como Robert Altman, Sidney Lumet e Martin Scorsese como tendo conduzido à crise da imagem-acção, comentando o autor que não existe apenas o cliché do exterior mas também o cliché interior e que, mais, nós pensamos e sentimos segundo clichés (1). Não espanta, assim, que Woody Allen, que dele se servira várias vezes, ao cliché aqui retorne. Só que há maneiras de trabalhar num filme com o cliché e contra o cliché, e neste filme a opção do cineasta é manifestamente a primeira (2).
           Menor mas mesmo assim um Woody Allen, "Para Roma, com Amor" vale por si mesmo como tal até porque contém uma inequívoca, muito oportuna e pertinente reflexão crítica sobre a celebridade nos dias de hoje, com a imprensa, o cinema e a televisão à cabeça, que a todos toma por imbecis e tenta imbecilizar. Quanto mais não seja por essa reflexão crítica, que atravessa todos os episódios mas é especialmente notória naquele em que intervém Roberto Benigni, em que o cineasta trabalha contra o cliché, este é um falhanço muito honroso de um maestro nada imbecil.

Notas
(1) Cf. Gilles Deleuze, "L'Image-mouvement", Les Éditions de Minuit, Paris, 1983, páginas 281-283.
(2) Não se deve, contudo, ignorar o que sobre a comédia escreve o mesmo autor a propósito da pequena forma da imagem-acção, in op. cit., capítulo 10, pág. 220. Na obra de Gilles Deleuze sobre cinema, e nesse capítulo em especial, a ausência de Billy Wilder é uma das omissões mais graves.

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