“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Instalações em diálogo

        "Passagens" é o nome de uma secção, composta pelo conjunto de três espaços de instalação com peças fílmicas da belga Chantal Akerman e do português Pedro Costa, incluída no Doclisboa 2012, um festival que ocupa já um lugar próprio no panorama internacional dos festivais de cinema documental. Organizado pela Apordoc - Associação pelo Documentário, o Doclisboa vai na sua décima edição, sempre com uma programação de altíssima qualidade, o que aqui devo começar por assinalar e saudar.
       Este ano com uma retrospectiva integral de Chantal Akerman, uma iniciaticva muito importante organizada em colaboração com a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, o Doclisboa 2012 inclui pela primeira vez a secção "Passagens", distribuída por três espaços: o Palácio  Galveias, a Galeria Carpe Diem - Arte e Pesquisa, instalada no Palácio Pombal, no Bairro Alto, e a Cinemateca Portuguesa.
                     
          No espaço do 1º andar do Palácio Galveias, deparamos na sala da direita com a instalação "Alto Cutelo", de Pedro Costa (2012), com dupla projecção HD 16mm, cor e som estéreo, que põe em diálogo, nas duas extremidades mais afastadas da sala, uma imagem em plano fixo de Ventura, ora silencioso, ora falando, contra um fundo neutro, olhos fixos na parte inferior do ecrã à sua esquerda, e uma outra imagem em que domina o fogo, em si e na incandescência do carvão que escorre, como lava, ao longo de um declive. Por momentos, no canto superior esquerdo desta última imagem vemos uma nesga de céu preenchida por nuvens, fumos de lava ou de uma fábrica. Por sua vez, a nobreza de Ventura, que sempre me impressionou desde "No Quarto da Vanda" (2000) e "Juventude em marcha" (2006), é aqui reafirmada.           
         Na sala da esquerda do mesmo andar passa, simultaneamente em cinco monitores vídeo colocados no chão, a instalação "La Chambre", de Chantal Akerman, em que num espaço interior uma câmara descreve uma panorâmica de 360º da direita para a esquerda, de modo a mostrar três vezes seguidas esse mesmo espaço, da cozinha à sala de trabalho, passando pelo quarto onde uma mulher está deitada numa cama. De repente, na última vez da panorâmica a câmara detém-se na sala e por duas vezes inverte o seu movimento para uma panorâmica da esquerda para a direita, de regresso ao início e passando de novo pelo quarto, onde a mulher deitada assume atitudes diferentes - come uma maçã, deita-se. Esta instalação é a cores, muda, e data de 1972. 
                    
            Na Carpe Diem descemos para os espaços da cave e deparamos, na sala à direita, com a instalação "The End of a Love Affair", de Pedro Costa (2007), em DVCAM - 4.3, cor e som estéreo, em que, em plano fixo, vemos um homem de pé num quarto, ao lado de uma cama vazia, junto de uma cadeira a que se agarra e voltado para a janela, cuja cortina, que ele olha e toca como em diálogo, é empurrada pelo vento. De início ouve-se só o ruído ambiente, proveniente do exterior, depois ouve-se uma música popular. Mais nada acontece e é muito bom. 
           Nas salas ao fundo das escadas à esquerda encontram-se quatro instalações sucessivas de Chantal Akerman. A primeira, "Femmes d'Anvers en Novembre", tem de um lado um ecrã grande encontrado na projecção contra a parede da própria sala, com imagens a preto e branco e em grande-plano de uma mulher que fuma, enquanto na parede oposta, em  ecrãs mais pequenos, passam imagens a cores tomadas a uma maior distância em que se vê a cidade e se vêem mulheres, que também elas fumam. Esta instalação, em dupla projecção vídeo, muda, data de 2008. Na sala seguinte, uma longa instalação com projecção simples, com cor e som, em 16:9, em que vemos a parte central da imagem de um deserto ocupada por um grande ecrã branco, enquanto uma voz salmodia. É "Une Voix dans le Désert", de 2002. Na terceira sala encontra-se uma outra instalação vídeo, "Maniac Summer" (2009), com cinco ecrãs na parede do fundo, um dos quais eventualmente sai do seu alinhamento, enquanto na parede da direita passam imagens a preto e branco em ecrã duplo, em loop. Por fim, na última parede da última sala é projectado "Tombée de Nuit sur Shanghai" (2009), instalação vídeo em loop com imagens de Shanghai num ecrã grande (belas imagens), com duas caixas de luz chinesas junto de cada um dos ângulos inferiores do ecrã.
                    
          Na Cinemateca, na Sala 6x2, uma instalação em loop, em projecção simples e a preto e branco, com som, uma mulher, Claire Wauthion, quase completamente despida, diante de um espelho observa e comenta o seu próprio corpo. É "In the Mirror", instalação de Chantal Akerman (1971-2007).
         Estes dois cineastas, dois nomes maiores do cinema contemporâneo que já se tinham encontrado em "O Estado do Mundo" (2007), para que Costa fizera "Tarrafal" e de cujo episódio homónimo Akerman extrai as imagens da instalação "Tombée de Nuit sur Shanghai", dedicam-se nestas instalações a reflexões sobre o tempo e o espaço, sobre a imagem isolada e a imagem em vários ecrãs em simultâneo, sobre o dispositivo do cinema, sobre a figura humana, com o que pensam a imagem, pensam o cinema, pensam cada um de nós e o mundo de uma maneira artística serena, bela, luminosa e perturbadora. Os espaços foram muito bem escolhidos e aproveitados, e em "Femmes d'Anvers en Novembre" há mesmo que tocar a imagem para sentir os buracos da cal da parede sobre que é projectada a imagem maior. Esta secção "Passagens" do Doclisboa 2012 sobre a arte visual tem também uma importante dimensão política ao pensar a imagem, ao questionar o suporte, o dispositivo e o espaço e ao interrogar o visitante sobre os outros e sobre si próprio - sobre o mundo contemporâneo e sobre a arte contemporânea.

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