De Julie Delpy chegam-nos os filmes em que ela é dirigida por Richard Linklater ou os que ela própria escreve e realiza na linha desses filmes, o que nos permite apreciar o seu talento como actriz e realizadora de talento. Não estreou comercialmente em Portugal "A Condessa"/"The Countess" (2009), que ela escreveu, dirigiu e interpretou e para que compôs a música. Contudo, esse é o filme dela que mais me interessa.
É a história de Erzebet Bathory, condessa húngara do século XVII, mulher de má fama na história que ela, porém, investe no seu lado feminino e humano com enorme sensibilidade cinematográfica e humana, com grande saber do cinema e da vida. A personagem terá sido muito controversa, já que foi acusada de coisas tão terríveis como bruxaria e assassinatos (em série), mas o que a ela lhe interessa é o lado humano dela, entre o amor, a paixão, a loucura e a morte. Projecto eminentemente não actual, extemporâneo, fora deste tempo de leveza e de superficialidade, de espectáculo e de vazio.
Mas a condessa dirigiu uma guerra contra os turcos e, depois da morte do marido, apaixonou-se por um homem 20 anos mais novo do que ela, que a deixou sem explicações depois de lhe ter jurado amor eterno. Em consequência, a condessa vinga-se e, para conservar a juventude graças ao sangue das suas vítimas, mata. Mata, ou manda matar, mulheres jovens, virgens, plebeias ou nobres, de qualquer condição, até que o amante é convencido a ser enviado como inquiridor dos seus crimes.
Não, não é o lado sado-masoquista que o filme também tem que mais me interessa, mas a mulher apaixonada, e por isso mais mulher e mais desamparada, que Julie Delpy capta muito bem na sua dupla qualidade de actriz e realizadora. Não sei, nem quero saber, se a verdadeira condessa como personagem histórica foi uma assassina terrível, que cometeu os piores crimes e as maiores tropelias - que o tenha sido e os tenha cometido -, se era já maldosa ou se assim se tornou com a decepção amorosa. Nela me interessa o lado viscontiano e truffauldiano da paixão cega, que a torna (que torna sempre quem atinge) imensamente frágil. Ela, que desde o viscontiano baile em que conhece o futuro amante tenta negar que para ela seja demasiado tarde, e por isso vai tentar manter-se jovem para si própria, para outros, para sempre, e esse combate contra o desgaste do tempo, bem como a sua passagem progressiva para o lado da indiferença e da loucura, está muito bem dado pela actriz como intérprete da protagonista e como realizadora do filme.
E aí, na paixão de uma nobre (que fosse plebeia, seria a mesma coisa), Julie Delpy consegue dar-nos de forma inteiramente convincente a passagem para o lado da desrazão de um amor que a si próprio puro se viu, e como tal se viu correspondido. Por mais pura que fosse, que tivesse sido, essa paixão correspondida, ela foi traída pelo malévolo e interesseiro pai dele, do seu amante, o que se deixa este a coberto da mentira alheia não o desobriga do seu próprio proclamado amor. Não obstante, ele...
Penso que a grande desculpa de Julie Delpy para este filme é ser mulher e filmar-se a si própria na pela da protagonista, que interpreta com um ar um tanto desprendido, como se aquilo, aquela mulher não tivesse nada a ver com ela. Não é, pois, tanto, ou não é só, o acusar os homens do mal da condessa, mas assumir nela a sua maior culpa, a de ter amado, assim, perdidamente, e por isso de desgosto e desespero ter morto, ou mandado matar, e ter morrido.
Pode a actriz voltar ao seu dia-a-dia de actriz e realizadora popular, com este ou com aquele actor, com este ou com aquele realizador. A sua marca, indelével, com a sua própria figura impressa, ficou aqui, em "A Condessa", definida e assinalada como cineasta completa num filme difícil que ela torna memorável, inesquecível. De resto, casem-se todos e vivam felizes para sempre. A vida é tão breve e somos todos tão imensamente frágeis, como nos veio recordar a morte de Manuel António Pina, homem de grande cultura que incluía o cinema, grande poeta e escritor, a quem aqui rendo, emocionado, o preito devido.
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