David Fincher, que tem na sua
filmografia filmes surpreendentes desde “Alien 3 – A Desforra“/”Alien 3”
(1992) e “7 Pecados Mortais”/“Seven” (1995) – penso em “O Jogo”/“The
Game” (1997), “Clube de Combate”/“Fight Club” (1999), “Sala de
Pânico”/“Panic Room” (2002) -, dirige em “Zodiac” (2007) um filme
notável que, pela sua estrutura narrativa e construção fílmica,
eu designaria de “clássico”.
Setembro 2007
Na verdade, este é um filme que recolhe alguma da melhor tradição do
cinema americano, a do filme policial e a do inquérito jornalístico (e
esta última, que vinha de trás, teve um grande incremento a partir dos
anos 70 do século XX), para refazer o percurso de uma perseguição e
tentativa de identificação de um “serial killer”, baseando-se, para
isso, em factos reais que, na época, estiveram na origem de “A Fúria da
Razão”/“Dirty Harry”, de Don Siegel (1971).
O filme em si mesmo é feito com brio, um brio que não envergonha
Fincher, mas deve-se dizer que este não surpreende aqui como em filmes
anteriores, de tal maneira o tema e as suas recorrências de investigação
entraram na rotina dos espectadores de cinema e de televisão. De facto,
em “Zodiac” poderia dizer-se que tudo está gerido, da narrativa aos
actores passando pelas referências de época, com grande competência, com
cada peça no lugar certo no momento próprio. Um jornalista, aliás
“cartoonista”, consegue, com persistência e tirando partido do passar do
tempo, o que a polícia não pôde conseguir, por incompetência, por falta
de meios, por falta de provas.
O que a mim me impressiona e agrada neste “Zodiac” é precisamente a sua
construção temporal. Efectivamente, aqui as coisas acontecem,
prosseguem, passam, e quando passam como que sobre elas cai o
esquecimento. Outros casos, outros crimes, outras vítimas passam a
ocupar a rotina policial e o dia a dia da comunicação. Geram-se
equívocos, sai um jornalista e entra outro, sai um polícia e depois mais
outro e o criminoso escapa-se. Mas há um jornalista que continua a
perseguir a verdade, a identidade do verdadeiro “serial killer”, sem
esmorecer, agarrado à ponta de verdade que julga ter tocado, imune a
intimidações. Com as ajudas disponíveis, constrói o “puzzle” que o leva à
identidade de um presumível criminoso, mas quando aí chega com as provas
bastantes, depois de uma sequência aliás excelente, já não há por onde
agarrar aquele, entretanto preso e condenado por um outro crime, e já em
liberdade. Vem a reconhecê-lo mais tarde num empregado de supermercado e
limitam-se a trocar um olhar esquivo e equívoco, de
reconhecimento/desconhecimento.
Ora é a passagem do tempo que me atrai neste filme feito em jeito de
reportagem, uma passagem que na primeira parte do filme tem um sentido
que se torna deceptivo, perante as dificuldades encontradas pelos
investigadores, policiais e jornalísticos, e que para o final do filme
se torna outro e transforma no carácter deceptivo da própria vida. Tudo
se faz, tudo se fez e nada acontece(u) do que se esperava que pudesse
acontecer. Ao passar, o tempo permitiu que tudo caísse não só no
esquecimento como na prática inutilidade de punir, pois quando o
presumido criminoso é primeiro havido como provável “serial killer”,
depois como quase certo “serial killer”, ou se consegue escapar, ou já
passaram as oportunidades de punição, e da dificuldade acaba por se
chegar à impossibilidade dela. Houve uns fogachos na comunicação, que
era o que interessava, e depois, e também por causa disso, tudo se
tornou inútil, resultando em pura perda. No final do filme será feita
uma identificação fotográfica, mas será demasiado tarde.
Não parece que a datação das sequências de um filme como este seja, hoje em dia, um processo original, mas o certo é que aqui tudo acaba por se justificar nesse registo temporal, uma vez que é em volta do tempo que David Fincher estrutura “Zodiac”. Se se fica, no final, confrontado com a decepção, também se percebe que é mesmo assim que as coisas acontecem na vida real, e o cineasta consegue, com rara felicidade, transmitir-nos esse decurso inexorável do tempo, que passa indiferente por todos, e a tudo e a todos coloca constantemente no passado, e, mesmo no presente, como observadores impotentes do passado.
Não parece que a datação das sequências de um filme como este seja, hoje em dia, um processo original, mas o certo é que aqui tudo acaba por se justificar nesse registo temporal, uma vez que é em volta do tempo que David Fincher estrutura “Zodiac”. Se se fica, no final, confrontado com a decepção, também se percebe que é mesmo assim que as coisas acontecem na vida real, e o cineasta consegue, com rara felicidade, transmitir-nos esse decurso inexorável do tempo, que passa indiferente por todos, e a tudo e a todos coloca constantemente no passado, e, mesmo no presente, como observadores impotentes do passado.
Há qualquer coisa de “Mystic River”, de Clint Eastwood (2003), que
passa por este “Zodiac”, que permanece, porém, como um filme muito mais
programático e, nessa medida, menos livre que aquele, embora não se
limite a cumprir o seu programa, uma vez que ao seu dispositivo de
quase-reportagem alguma coisa acrescenta do lado do tempo e da reflexão
que ele pode proporcionar.
Mas o tratamento da fotografia (de Harris Savides, que já trabalhara
com o cineasta em "O Jogo), com uma utilização invulgar da alta
definição, se implica uma localização temporal precisa do filme não
implica o realismo, e embora as referências cinematográficas a filmes da
época acentuem a referência temporal, a aparência das personagens do
“cartoonista” e de Zodiac tem traços de banda desenhada, nomeadamente
por não ser visível a passagem do tempo por eles, o que reforça no filme
um princípio de artifício, que considero ser um toque pessoal de
Fincher e que a composição digital de elementos da imagem confirma.
Aliás, o lado de inspiração cinematográfica do filme não se limita à
época e está muito bem conseguido, designadamente com a referência
explícita a “O Malvado Zaroff”/“The Most Dangerous Game”, de Irving
Pichel e Ernest. B. Schoedsack (1932), numa sequência-chave, e mesmo
este “Zodiac” pode ser visto como uma réplica bem imaginada de “Seven”
num registo diferente.
Claro que há a construção das personagens e a forma como elas
atravessam as sucessivas situações, com uma escolha e direcção de
actores inesperada, que faz com que tudo jogue com o tom de reportagem,
aliás de “falsa reportagem”; que há uma fotografia que se pretende fiel
aos acontecimentos que são reportados, à época respectiva e àquele tom
no seu registo de “construído”; que a direcção de Fincher é sempre
segura e que o ritmo do filme decresce para o final. Mas mesmo este
último ponto não deve, a meu ver, ser visto como negativo, já que esse
ritmo, simultaneamente mais elíptico e mais distendido, da parte final vai
ao encontro da inapelável e indispensável reflexão sobre o tempo que o
cineasta nos quer transmitir no filme, o que desse modo consegue sem lhe
retirar o carácter de parábola sobre o terror actual nos Estados Unidos
devido à ameaça terrorista.
Se inicialmente denominei este filme como “clássico” por questões
narrativas e fílmicas, devo agora esclarecer que ele se apresenta, na
verdade, como um “falso clássico” na sua dimensão visual e no tratamento
das personagens, como uma obra de registo diferente das anteriores do
cineasta e como possível ponto de transição na obra dele, mais centrado
na reflexão que na acção, que por estas razões surpreende também.
Setembro 2007
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