“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 29 de janeiro de 2012

É o tempo, estúpido!

   David Fincher, que tem na sua filmografia filmes surpreendentes desde “Alien 3 – A Desforra“/”Alien 3” (1992) e “7 Pecados Mortais”/“Seven” (1995) – penso em “O Jogo”/“The Game” (1997), “Clube de Combate”/“Fight Club” (1999), “Sala de Pânico”/“Panic Room” (2002) -, dirige em “Zodiac” (2007) um filme notável que, pela sua estrutura narrativa e construção fílmica, eu designaria de “clássico”.
    Na verdade, este é um filme que recolhe alguma da melhor tradição do cinema americano, a do filme policial e a do inquérito jornalístico (e esta última, que vinha de trás, teve um grande incremento a partir dos anos 70 do século XX), para refazer o percurso de uma perseguição e tentativa de identificação de um “serial killer”, baseando-se, para isso, em factos reais que, na época, estiveram na origem de “A Fúria da Razão”/“Dirty Harry”, de Don Siegel (1971).
    O filme em si mesmo é feito com brio, um brio que não envergonha Fincher, mas deve-se dizer que este não surpreende aqui como em filmes anteriores, de tal maneira o tema e as suas recorrências de investigação entraram na rotina dos espectadores de cinema e de televisão. De facto, em “Zodiac” poderia dizer-se que tudo está gerido, da narrativa aos actores passando pelas referências de época, com grande competência, com cada peça no lugar certo no momento próprio. Um jornalista, aliás “cartoonista”, consegue, com persistência e tirando partido do passar do tempo, o que a polícia não pôde conseguir, por incompetência, por falta de meios, por falta de provas.
                                
   O que a mim me impressiona e agrada neste “Zodiac” é precisamente a sua construção temporal. Efectivamente, aqui as coisas acontecem, prosseguem, passam, e quando passam como que sobre elas cai o esquecimento. Outros casos, outros crimes, outras vítimas passam a ocupar a rotina policial e o dia a dia da comunicação. Geram-se equívocos, sai um jornalista e entra outro, sai um polícia e depois mais outro e o criminoso escapa-se. Mas há um jornalista que continua a perseguir a verdade, a identidade do verdadeiro “serial killer”, sem esmorecer, agarrado à ponta de verdade que julga ter tocado, imune a intimidações. Com as ajudas disponíveis, constrói o “puzzle” que o leva à identidade de um presumível criminoso, mas quando aí chega com as provas bastantes, depois de uma sequência aliás excelente, já não há por onde agarrar aquele, entretanto preso e condenado por um outro crime, e já em liberdade. Vem a reconhecê-lo mais tarde num empregado de supermercado e limitam-se a trocar um olhar esquivo e equívoco, de reconhecimento/desconhecimento.
    Ora é a passagem do tempo que me atrai neste filme feito em jeito de reportagem, uma passagem que na primeira parte do filme tem um sentido que se torna deceptivo, perante as dificuldades encontradas pelos investigadores, policiais e jornalísticos, e que para o final do filme se torna outro e transforma no carácter deceptivo da própria vida. Tudo se faz, tudo se fez e nada acontece(u) do que se esperava que pudesse acontecer. Ao passar, o tempo permitiu que tudo caísse não só no esquecimento como na prática inutilidade de punir, pois quando o presumido criminoso é primeiro havido como provável “serial killer”, depois como quase certo “serial killer”, ou se consegue escapar, ou já passaram as oportunidades de punição, e da dificuldade acaba por se chegar à impossibilidade dela. Houve uns fogachos na comunicação, que era o que interessava, e depois, e também por causa disso, tudo se tornou inútil, resultando em pura perda. No final do filme será feita uma identificação fotográfica, mas será demasiado tarde.
                                                
    Não parece que a datação das sequências de um filme como este seja, hoje em dia, um processo original, mas o certo é que aqui tudo acaba por se justificar nesse registo temporal, uma vez que é em volta do tempo que David Fincher estrutura “Zodiac”. Se se fica, no final, confrontado com a decepção, também se percebe que é mesmo assim que as coisas acontecem na vida real, e o cineasta consegue, com rara felicidade, transmitir-nos esse decurso inexorável do tempo, que passa indiferente por todos, e a tudo e a todos coloca constantemente no passado, e, mesmo no presente, como observadores impotentes do passado.
    Há qualquer coisa de “Mystic River”, de Clint Eastwood (2003), que passa por este “Zodiac”, que permanece, porém, como um filme muito mais programático e, nessa medida, menos livre que aquele, embora não se limite a cumprir o seu programa, uma vez que ao seu dispositivo de quase-reportagem alguma coisa acrescenta do lado do tempo e da reflexão que ele pode proporcionar.
    Mas o tratamento da fotografia (de Harris Savides, que já trabalhara com o cineasta em "O Jogo), com uma utilização invulgar da alta definição, se implica uma localização temporal precisa do filme não implica o realismo, e embora as referências cinematográficas a filmes da época acentuem a referência temporal, a aparência das personagens do “cartoonista” e de Zodiac tem traços de banda desenhada, nomeadamente por não ser visível a passagem do tempo por eles, o que reforça no filme um princípio de artifício, que considero ser um toque pessoal de Fincher e que a composição digital de elementos da imagem confirma. Aliás, o lado de inspiração cinematográfica do filme não se limita à época e está muito bem conseguido, designadamente com a referência explícita a “O Malvado Zaroff”/“The Most Dangerous Game”, de Irving Pichel e Ernest. B. Schoedsack (1932), numa sequência-chave, e mesmo este “Zodiac” pode ser visto como uma réplica bem imaginada de “Seven” num registo diferente.
                                  
    Claro que há a construção das personagens e a forma como elas atravessam as sucessivas situações, com uma escolha e direcção de actores inesperada, que faz com que tudo jogue com o tom de reportagem, aliás de “falsa reportagem”; que há uma fotografia que se pretende fiel aos acontecimentos que são reportados, à época respectiva e àquele tom no seu registo de “construído”; que a direcção de Fincher é sempre segura e que o ritmo do filme decresce para o final. Mas mesmo este último ponto não deve, a meu ver, ser visto como negativo, já que esse ritmo, simultaneamente mais elíptico e mais distendido, da parte final vai ao encontro da inapelável e indispensável reflexão sobre o tempo que o cineasta nos quer transmitir no filme, o que desse modo consegue sem lhe retirar o carácter de parábola sobre o terror actual nos Estados Unidos devido à ameaça terrorista.
    Se inicialmente denominei este filme como “clássico” por questões narrativas e fílmicas, devo agora esclarecer que ele se apresenta, na verdade, como um “falso clássico” na sua dimensão visual e no tratamento das personagens, como uma obra de registo diferente das anteriores do cineasta e como possível ponto de transição na obra dele, mais centrado na reflexão que na acção, que por estas razões surpreende também.

Setembro 2007

Sem comentários:

Enviar um comentário