“Cópia Certificada”/”Copie conforme”
(2009) é o primeiro filme de ficção que Abbas Kiarostami faz fora do Irão. É
rodado em Itália, na Toscânia, e aí ele assume uma inspiração rosselliniana, a
de “Viagem em Itália”/”Viaggio in Italia” (1954), para, contudo, a subverter,
ao conferir ao seu filme um tom de jogo, de devaneio, dir-se-ia, com a ideia de
cópia até chegar ao falso, superiormente tratado por Orson
Welles.
O cineasta não se dispensa de por
momentos se citar a si próprio, como na viagem de automóvel dos protagonistas, filmada do interior
como especialmente no seu célebre “Dez”/”Ten” (2002), ou nos dois planos tirados do
espelho a que personagens se olham, como em “O vento levar-nos-á”/”Bad mara khadad bord”
(1999), mas torna-se claro que ele escolheu filmar em Itália um argumento
baseado numa ideia sua por razões muito precisas, que se prendem com o aprofundamento
do seu trabalho sobre a condição humana, sobre o espaço e sobre o tempo.
De facto, ao
partir do pretexto de um encontro não acidental entre um escritor inglês, James Miller
(William Shimell), e uma francesa radicada em Itália (Juliette Binoche), Kiarostami acompanha-os no seu percurso pela arte
italiana mas para isso (e por causa disso) o par acidental transforma-se em falso
casal, com o que é introduzido um elemento de jogo que replica quer a ideia de original e
de cópia, que o ensaio que o protagonista fora apresentar tratava e a que uma
representação pictórica que ela o faz visitar se refere, quer o casal da irmã e do cunhado da
protagonista, a que ela faz referência no diálogo. Ora este falso casal, verdadeira
cópia de um outro, comporta-se publicamente como um verdadeiro casal de uma maneira de tal
forma convincente que se percebe como, durante aquela tarde na Toscânia, eles
formam um verdadeiro casal.
Mas não se
trata aqui de uma mera ideia de representação e de jogo, já que o cineasta filma admiravelmente tanto quando acompanha os
protagonistas em plano-sequência como quando lhes define um cenário histórico
preciso, objecto de um tratamento especialmente brilhante quando estão em causa as
cerimónias de casamento e a fotografia com um dos casais – o plano estarrecedor
sobre o enquadramento de uma porta - e quando se prepara a explicação sobre uma estátua
em diálogo com um outro casal mais velho (Jean-Claude Carrière e Agathe Natanson) –
o plano abissal da praça vista em reflexo no espelho, que replica o de Juliette
Binoche no interior da loja de antiguidades, no início. No primeiro caso, assistimos a um
regresso às origens da ideia de casal, que como que certifica o seu próprio
estatuto matrimonial quinze anos depois. No segundo, é o marido que, renitente na fotografia na
sequência anterior, pode ser visto com o espelho, que reflecte, em falso mas
verdadeiro, o espaço em que o tempo foi cristalizado numa estátua e para o qual se vai
deslocar para falar sobre ela, sobre o tempo e ouvir sobre o presente.
Não se
pode dissociar deste “Cópia Certificada” a actriz Juliette Binoche, que fora a
única não iraniana no anterior e também excepcional “Shirin” (2008), que aqui assume uma personagem desconcertantemente feminina, que
ela eleva até uma plano inusitado na sequência em que se prepara para um
marido distraído. Refira-se, aliás, que já “Shirin” se concentrava na sensibilidade
feminina, ao filmar os rostos de mulheres durante a projecção de um filme que apenas elas
viam, naquilo que antecede e completa a personagem deste filme, mais actriz que
espectadora, mas actriz porque espectadora.
E se a
ideia de falso, tão cara a Welles, assume aqui contornos novos e inesperados, tal fica a dever-se à inspiração de um cineasta
que consegue o prodígio de, com os seus actores e o cenário adequado, filmado com a
inspiração fotográfica, cinematográfica e poética que o caracteriza, criar uma
verdadeira verdade original sobre um ponto de partida falso, não se dispensando de concluir
com um plano que, depois do fim, permite deixar o filme em aberto para a outra
perspectiva: eles eram um verdadeiro
casal.
Mas mesmo
nesse final, visualmente trabalhado do lado do quadro e do som (os sinos e o relógio da igreja), percebe-se claramente como
Abbas Kiarostami continua a ser um mestre do quadro e do plano, permitindo que em cada
momento o espaço dos seus filmes se recorte de uma forma deliberadamente
expressiva, resultante de um trabalho superior com as determinantes visuais de cada
filme, como neste “Cópia Certificada” se confirma de forma superior. Efectivamente,
como na paisagem do seu país ou no interior de um automóvel, em Teerão, o cineasta
sabe carregar a expressão de um rosto, de uma personagem, sobredeterminando-a pela forma
como e o momento em que o enquadra, neste seu mais recente filme como no
imediatamente anterior. Assim, sempre mutável, a condição humana se expõe e se desfaz em
cada um dos seus filmes, na construção de uma verdade que excede a realidade para
melhor a interpretar, a tentar perceber, dando a ver e ouvir as suas personagens para nosso
fascínio e deslumbramento mas também para que as possamos, e nos possamos compreender.
Há quem
considere Abbas Kiarostami o mais importante cineasta vivo e essa é uma opinião a que ele, filme a filme, se encarrega de
fornecer sempre novos argumentos para que seja defendida. E se bem atentarmos neste seu
último trabalho, o simples de que falam os protagonistas pode ser de uma espantosa
complexidade e, simultaneamente, fácil de atingir com recurso à imaginação e
à crença no que se faz. Também aqui quer Rossellini quer Welles, cada um à sua
maneira, não estão longe.
Dezembro 2011
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