“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 14 de janeiro de 2012

Uma tarde na Toscânia


          “Cópia Certificada”/”Copie conforme” (2009) é o primeiro filme de ficção que Abbas Kiarostami faz fora do Irão. É rodado em Itália, na Toscânia, e aí ele assume uma inspiração rosselliniana, a de “Viagem em Itália”/”Viaggio in Italia” (1954), para, contudo, a subverter, ao conferir ao seu filme um tom de jogo, de devaneio, dir-se-ia, com a ideia de cópia até chegar ao falso, superiormente tratado por Orson Welles.
         O cineasta não se dispensa de por momentos se citar a si próprio, como na viagem de automóvel dos protagonistas, filmada do interior como especialmente no seu célebre “Dez”/”Ten” (2002), ou nos dois planos tirados do espelho a que personagens se olham, como em “O vento levar-nos-á”/”Bad mara khadad bord” (1999), mas torna-se claro que ele escolheu filmar em Itália um argumento baseado numa ideia sua por razões muito precisas, que se prendem com o aprofundamento do seu trabalho sobre a condição humana, sobre o espaço e sobre o tempo.
        De facto, ao partir do pretexto de um encontro não acidental entre um escritor inglês, James Miller  (William Shimell), e uma francesa radicada em Itália (Juliette Binoche), Kiarostami acompanha-os no seu percurso pela arte italiana mas para isso (e por causa disso) o par acidental transforma-se em falso casal, com o que é introduzido um elemento de jogo que replica quer a ideia de original e de cópia, que o ensaio que o protagonista fora apresentar tratava e a que uma representação pictórica que ela o faz visitar se refere, quer o casal da irmã e do cunhado da protagonista, a que ela faz referência no diálogo. Ora este falso casal, verdadeira cópia de um outro, comporta-se publicamente como um verdadeiro casal de uma maneira de tal forma convincente que se percebe como, durante aquela tarde na Toscânia, eles formam um verdadeiro casal.
     Mas não se trata aqui de uma mera ideia de representação e de jogo, já que o cineasta filma admiravelmente tanto quando acompanha os protagonistas em plano-sequência como quando lhes define um cenário histórico preciso, objecto de um tratamento especialmente brilhante quando estão em causa as cerimónias de casamento e a fotografia com um dos casais – o plano estarrecedor sobre o enquadramento de uma porta - e quando se prepara a explicação sobre uma estátua em diálogo com um outro casal mais velho (Jean-Claude Carrière e Agathe Natanson) – o plano abissal da praça vista em reflexo no espelho, que replica o de Juliette Binoche no interior da loja de antiguidades, no início. No primeiro caso, assistimos a um regresso às origens da ideia de casal, que como que certifica o seu próprio estatuto matrimonial quinze anos depois. No segundo, é o marido que, renitente na fotografia na sequência anterior, pode ser visto com o espelho, que reflecte, em falso mas verdadeiro, o espaço em que o tempo foi cristalizado numa estátua e para o qual se vai deslocar para falar sobre ela, sobre o tempo e ouvir sobre o presente.
       Não se pode dissociar deste “Cópia Certificada” a actriz Juliette Binoche, que fora a única não iraniana no anterior e também excepcional “Shirin” (2008), que aqui assume uma personagem desconcertantemente feminina, que ela eleva até uma plano inusitado na sequência em que se prepara para um marido distraído. Refira-se, aliás, que já “Shirin” se concentrava na sensibilidade feminina, ao filmar os rostos de mulheres durante a projecção de um filme que apenas elas viam, naquilo que antecede e completa a personagem deste filme, mais actriz que espectadora, mas actriz porque espectadora.
       E se a ideia de falso, tão cara a Welles, assume aqui contornos novos e inesperados, tal fica a dever-se à inspiração de um cineasta que consegue o prodígio de, com os seus actores e o cenário adequado, filmado com a inspiração fotográfica, cinematográfica e poética que o caracteriza, criar uma verdadeira verdade original sobre um ponto de partida falso, não se dispensando de concluir com um plano que, depois do fim, permite deixar o filme em aberto para a outra perspectiva: eles eram um verdadeiro
casal. 
       Mas mesmo nesse final, visualmente trabalhado do lado do quadro e do som (os sinos e o relógio da igreja), percebe-se claramente como Abbas Kiarostami continua a ser um mestre do quadro e do plano, permitindo que em cada momento o espaço dos seus filmes se recorte de uma forma deliberadamente expressiva, resultante de um trabalho superior com as determinantes visuais de cada filme, como neste “Cópia Certificada” se confirma de forma superior. Efectivamente, como na paisagem do seu país ou no interior de um automóvel, em Teerão, o cineasta sabe carregar a expressão de um rosto, de uma personagem, sobredeterminando-a pela forma como e o momento em que o enquadra, neste seu mais recente filme como no imediatamente anterior. Assim, sempre mutável, a condição humana se expõe e se desfaz em cada um dos seus filmes, na construção de uma verdade que excede a realidade para melhor a interpretar, a tentar perceber, dando a ver e ouvir as suas personagens para nosso fascínio e deslumbramento mas também para que as possamos, e nos possamos compreender.
         Há quem considere Abbas Kiarostami o mais importante cineasta vivo e essa é uma opinião a que ele, filme a filme, se encarrega de fornecer sempre novos argumentos para que seja defendida. E se bem atentarmos neste seu último trabalho, o simples de que falam os protagonistas pode ser de uma espantosa complexidade e, simultaneamente, fácil de atingir com recurso à imaginação e à crença no que se faz. Também aqui quer Rossellini quer Welles, cada um à sua maneira, não estão longe.

Dezembro 2011

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