“Promessas Perigosas”/”Eastern
Promises”, de 2007, o último filme de David Cronenberg, segue na senda
realista do anterior “Uma História de Violência”/”A History of
Violence”, de 2005, embora a família do filme anterior surja agora
também sob a forma de máfia – a máfia russa em Londres.
Sem sombra do fantástico com o qual o cineasta foi inicialmente
identificado e a que regressou recorrentemente, este “Promessas
Perigosas” surge recheado de referências cinematográficas óbvias
(Francis Ford Coppola, em especial, que se tornou um canône no género)
para romper e traçar o seu próprio caminho. Com argumento de Steve
Knight, com o qual abundantemente colaborou, como costuma fazer,
Cronenberg narra um caso particular extremamente interessante em que
ressurgem com novas configurações e novos contornos figuras arquétipas.
A carga simbólica que reveste o embate entre Nikolai/Viggo Mortensen e
Kirill/Vincent Cassel em torno da figura paterna de Semyon/Armin
Mueller-Stahl está, porém, sempre encarnada em figuras físicas muito bem
desenhadas, de que Anna/Naomi Watts e a respectiva família fazem um apropriado contraponto, já que a relação que ela estabelece com
os membros da família mafiosa se torna motivo central da narrativa – e
haverá que ter presente a recorrência da família como motivo temático na
obra de David Cronenberg. De facto, é à volta da tradução de um diário
manuscrito que Anna entra em contacto com a comunidade russa em Londres e
também com Nikolai, e isso vai ser fundamental para o avanço do filme.
Mas o que torna este decisivamente superior e superiormente
cronenberguiano é a sua construção inteiramente clássica, mais ainda que
“Uma História de Violência” sem qualquer assomo de rebuscamento formal.
Tudo aqui é preciso, exacto, da planificação à montagem, passando pelo
uso da elipse, sempre superiormente utilizada como é apanágio do
cineasta, o que torna uma narrativa de grande carga física perfeitamente
clara na sua turbulência, na complexidade dos meandros da sua intriga.
E se a narrativa assume contornos bíblicos, shakespeareanos, é não só
devido às personagens e à sua caracterização mas também graças à
intensidade física que as interpretações implicam. Por esse lado, o das
tatuagens mas não só ele, entramos de pleno no universo corporal que, de
“Experiência Alucinante”/“Videodrome” (1982) a “A Mosca”/“The Fly”
(1986), de “O Festim Nu”/“Naked Lunch”(1991) a “eXistenZ” (1999),
atravessa a obra do cineasta, de que é uma das marcas distintivas. De
facto, há em “Promessas Perigosas” uma energia que extravasa em
violência, que é física e fisicamente dada, envolve a carga de
ambiguidade das personagens e da narrativa e confere a esta um carácter
dramático inusitado até catapultar tudo e todos para um plano catártico
de tragédia.
Mas se esse lado físico do filme é importante, não
o é menos o cruzamento de espaços geográficos a que nele assistimos,
numa referência extremamente actual á mobilidade e ao cruzamento de
culturas em que vivem todas as sociedades da Europa ocidental. E penso
mesmo que a deslocação geográfica do filme para a Europa (onde já
decorria, também em Londres, “Spider”, de 2002) é muito importante e
sintomática da multiplicidade de referências culturais a que David
Cronenberg está aberto. Aliás, no caso dele percebe-se que isso suceda
sem cair na banalidade da superprodução internacional, já que se ajustam
plenamente os intuitos do cineasta, o meio em que decorre o filme e a
localização geográfica deste, com referências múltiplas.
“Promessas Perigosas” surge, assim, como um filme justo, exactamente
cronenberguiano no modo como as imagens justapostas segregam, diria que
fisicamente, uma narrativa que é justamente aquela, e não outra.
Cineasta culto e de referência, Cronenberg constrói com particular
sabedoria as cenas de violência, em especial a da luta nos banhos
públicos, e as cenas de elevada carga dramática, por via de regra
resolvidas de uma forma cinematográfica muito simples, clássica, e por
isso extremamente eficazes, como a da tentativa de afogamento da
criança.
E se o filme, pelo seu lado de intriga de família mafiosa, envolve uma
elevada dose de ambiguidade ela advém em larga medida da
sua concentração na personagem de Nikolai, especialmente no final
carregado de sugestões de uma dualidade de que aparentemente ele não sai
e que faz parte integrante da poderosa carga sugestiva do filme. Se ele é vencedor daquela contenda, para quem e para quê serviu o
seu triunfo? E esta pergunta, evidentemente perturbadora, faz parte
essencial da trama dramática de “Promessas Perigosas”, e dela não somos
distraídos por quaisquer artifícios, formais ou narrativos. Deve, aliás,
notar-se que também esse jogo do duplo, da duplicidade, assombra a obra
do cineasta, desde “A Mosca” e “Irmãos Inseparáveis”/“Dead Ringers”
(1988) de forma muito acentuada, dela fazendo parte e conferindo-lhe um
interesse muito especial, ao ponto de
dever mesmo ser considerado parte integrante da sua modernidade.
Devo ainda fazer uma referência, que não é frequente encontrar, ao
extraordinário talento de David Cronenberg na escolha dos actores e na
direcção deles, coisa que até surge como bastante clara neste filme mas
que é consistente com um continuado trabalho do cineasta na procura do
actor certo para cada papel e está na origem da perfeita adequação que
daí habitualmente resulta, com o acréscimo precioso da direcção dele – e
neste filme o lado masculino do elenco está sobre-representado devido
às suas características de tragédia clássica, que encena os lugares do
poder.
Além disso, a fotografia de Peter Suschitzky, colaborador do cineasta
desde ”Irmãos Inseparáveis”, os cenários de Carol Spier, que
com ele trabalha desde “Fast Company”, 1979 (com excepção de “Crash”, 1996), o
guarda-roupa de sua irmã Denise Cronenberg, sua colaboradora desde ”A
Mosca”, e a montagem, aqui classicamente “invisível”, de Ronald Sanders,
responsável por este sector nos filmes dele desde “Fast Company” (com
excepção de “A Ninhada”/“The Brood”, 1979), marcam a tonalidade visual e
o clima muito característicos dos filmes do autor nos ambientes muito
específicos e nas personagens notavelmente caracterizadas, nomeadamente
do lado emocional, deste “Promessas Perigosas”. E também a música, com
motivos russos, de Howard Shore, que colabora com David Cronenberg desde
“A Ninhada” (com excepção de “Zona de Perigo”/“The Dead Zone”, 1983),
não deve ser considerada alheia ao peculiar impacto do filme, já que
dele participa de maneira assinalável. Numa palavra, em “Promessas
Perigosas” temos a equipa de colaboradores habituais do cineasta
canadiano a trabalhar em pleno.
Agora que o filme, centrado na máfia russa em Londres e aí muito bem
caracterizado, apesar de aparentemente frio encontre ressonâncias
universais e intemporais inequívocas deverá ser considerado como fruto
dos muitos talentos acumulados de David Cronenberg, que insisto em
considerar como um dos mais importantes criadores cinematográficos
vivos, possuídor de um universo pessoal e de um imaginário inteiramente
coerentes em que, ao contrário do que se diz, não é apenas o corpo que
está em jogo, uma vez que nos seus filmes o lado físico e o lado
psíquico sempre se replicam, reflectem/refractam e assim se ampliam.
Dezembro 2007
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