Partiram com doze horas de intervalo no dia 30 de Julho de 2007 dois dos maiores modernos que o cinema conheceu no seu primeiro século de existência: Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. Quer um quer o outro marcaram o cinema da segunda metade do século XX com filmes de uma enorme audácia, de uma grande profundidade e de uma excepcional qualidade, que influenciaram todos os que se lhes seguiram.
Ser moderno significou, em Ingmar Bergman (nascido em 14 de Julho de 1918 em Uppsala, Suécia), fugir ao cânone do cinema anterior, designadamente do seu país, a Suécia, embora construindo os seus filmes sobre o passado do cinema sueco: Victor Sjöström, Mauritz Stiller, Gustav Molander, Alf Sjöberg. Criador original, ele construiu a partir do argumento filmes que estavam de acordo com a sua vida e com o seu tempo, e que, sendo obras pessoais, de autor, trataram de uma maneira única quer da sociedade quer de questões essenciais do ser humano e, desse modo, marcaram não só a cultura do seu país, mas também a cultura europeia e mundial (e não estou a falar apenas no cinema).
Também homem de teatro, para o qual encenou frequentemente mesmo depois da sua retirada oficial da actividade cinematográfica, Bergman criou, na fase inicial da sua obra, até “Noite de Circo” (1953), filmes com personagens de intensa luminosidade marcadas pela sombra, pela tragédia. Nessa primeira fase destacam-se, nomeadamente, dois filmes:“Um Verão de Amor” (1950) e “Mónica e o Desejo” (1952). A partir daí, enfrentou as questões existenciais mais profundas do ser humano em filmes de uma apurada construção cinematográfica, quer nos mais alegóricos, como “O Sétimo Selo” (1956) e “A Fonte da Virgem” (1959), quer nos mais invulgares, como “Sorrisos de uma Noite de Verão” (1955), “Morangos Silvestres” (1957), “O Rosto” (1958) e “O Olho do Diabo” (1960), que acompanharam os filmes sobre mulheres, como “Uma Lição de Amor” (1954), “Sonhos de Mulheres” (1955), “No Limiar da Vida” (1957), mais tarde “A Força do Sexo Fraco” (1964). Nesse percurso, em que “Morangos Silvestres”, interpretado por Victor Sjöström, ocupa posição central, surgem os filmes de mais acentuada dúvida metafísica, a trilogia composta por “Em Busca da Verdade” (1961), “Luz de Inverno” (1962) e “O Silêncio” (1963), nos dois primeiros dos quais é questionado o silêncio de Deus, que haviam de o levar à sua obra-prima, “A Máscara”/”Persona” (1965), em que divide entre duas personagens femininas a mesma indagação da mulher, à semelhança do que fizera no filme de 1963 mas levando-a mais longe e questionando o próprio cinema.
Foi até “Lágrimas e Suspiros” (1972), filme fundamental sobre o mundo das mulheres e sobre a morte - já a cores, o que sucedia desde “A Paixão” (1969) - que os filmes dele, progressivamente mais recentrados na relação sentimental, implicaram uma maior modernidade fílmica, nomeadamente através de uma construção simbólica, com repercussões em todo o cinema europeu.
O que caracterizou essa modernidade? Formalmente, o grande plano de rosto, o tratamento do quadro e do espaço até à criação de um verdadeiro “cinema de câmara”, que surge com a trilogia e se caracteriza por um número reduzido de personagens olhadas com grande exigência e grande rigor formal, que o cineasta contrapôs como “música de câmara” aos filmes anteriores, que considerou “sinfonia”. Tematicamente, o corte com os clássicos do melodrama e a filmagem com os olhos enxutos da tragédia íntima das personagens, passando para os espectadores a obrigação de formarem o seu juízo. Podem ser reconhecidas influências teatrais (Ibsen, Strinberg, que repetidamente encenou para o teatro) e influências cinematográficas (além dos mencionados, o “realismo poético” francês) num universo pessoal marcado pela dúvida existencial até à cisão de um Eu compósito (“A Máscara”).
Ingmar Bergman fez até aí um cinema depurado, reduzido ao essencial do ponto de vista formal, que tentou captar os ritmos interiores das suas personagens, marcadas pela incerteza decorrente de uma angústia primordial. Mas a referência musical não é acidental, dado que a música é essencial na criação de cada filme dele e em toda a sua obra, como ele próprio reconhecia.
Essa obra prossegue depois de 1972 com filmes de uma grande qualidade, mas o centro de gravidade dela desloca-se para dramas mais realistas sem que prossiga ao mesmo nível a construção simbólica anterior. São filmes como “Cenas da Vida Conjugal” (1973), “Face a Face” (1975), “O Ovo da Serpente” (1977), “Sonata de Outono” (1978) e “Da Vida das Marionetas” (1980), em que de íntimo o drama se torna mais exterior, embora se mantenha um universo perturbado mas agora por confrontos mais físicos, sem que, todavia, os anteriores desapareçam. Com esta passagem para a fase final da obra dele, o seu cinema torna-se mais expansivo, eventualmente menos depurado (menos moderno), até essa espantosa súmula final que é “Fanny e Alexandre” (1983), poderosa e secreta recordação da Suécia do início do século XX e da infância, já presente em “Morangos Silvestres”, em que recupera a subtileza dos seus melhores filmes com personagens plenas de verdade mas também de uma aura que advém da colocação do ponto de vista nas crianças. Um filme muito diferente, “Depois do Ensaio” (1984), decantado, comenta num registo muito diferente toda a obra, em especial esta última fase dela.
Depois disso, o silêncio do afastamento oficial do cinema, com trabalhos para televisão, encenações teatrais, argumentos, livros – entre os quais as suas memórias, “Lanterna Mágica”, de 1987 (1), (2) – e esse prodigioso regresso musical e final que é “Saraband”, último relance de olhos cinematográfico sobre a vida que continua a passar em confronto de sexos e de gerações.
Mas se há um filme que faz a síntese antecipada da obra de Ingmar Bergman ele é “A Flauta Mágica” (1974), por filmar a famosa ópera de W. A. Mozart e por acolher no seu dispositivo fílmico a outra paixão dele, que tanto o marcou: o teatro.
De entre a equipa de que se rodeou ao longo da sua obra, centrada numa muito larga medida em torno das mulheres, destacarei alguns dos seus actores - Max Von Sydow, Gunnar Björnstrand, Erland Josephson - e actrizes – Maj-Britt Nilsson, Eva Dahlbeck, Harriet Andersson, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Liv Ullman – mais assíduos e os directores de fotografia Gunnar Fischer (anos 40 e 50) e Sven Nykvist (a partir dos anos 60, a preto e branco e a cores).
Para Michelangelo Antonioni (nascido em 29 de Setembro de 1912 em
Ferrara, Itália) verifica-se um outro percurso que o conduz a uma
posição também central na modernidade cinematográfica. Depois de uma
breve passagem pelo Centro Sperimentale de Cinematografia e de ter feito
crítica nas revistas “Cinema”, “Cinema Nuovo” e “Bianco e Nero”, de ter
sido argumentista e assistente de realização, ele inicia-se com
documentários curtos (3) e as suas primeiras longas-metragens movem-se
também no quadro do cinema italiano do pós-guerra marcado pelo
neo-realismo, o que levou apressadamente a integrá-lo no movimento numa
altura, anos 50 do século XX, em que alguns dos seus nomes mais
destacados dele se afastavam para empreenderem percursos extremamente
pessoais (penso em Rossellini e em Visconti, em especial). Ora a verdade
é que ele entra, logo desde o seu primeiro filme, “Escândalo de Amor”
(1950), numa modernidade de sentimentos despojados e de grande rigor
formal, geométrico, dos enquadramentos, dos movimentos de câmara e da
consequente criação do espaço. Os filmes dele, marcados pela vida
moderna do pós-guerra, tornam-se modernos por tratarem dos problemas dos
homens e das mulheres do seu tempo nas grandes cidades e nas condições
económicas da época de forma moderna, sem recurso a qualquer retórica
fílmica melodramática, nomeadamente moralista. São obras radicalmente
pessoais desde o argumento, que vão culminar com “O Grito” (1957), filme
que veio esclarecer que, em vez de neo-realista, o seu realismo era
“interior” (4).
Curiosamente, pela mesma altura da trilogia de
Bergman é com uma outra trilogia que Antonioni define o espaço da sua
modernidade. Na verdade, “A Aventura” (1960), “A Noite” (1961) e “O
Eclipse” (1962) são filmes marcados pelo enigma, o primeiro e
fundamental, pela dúvida todos eles, num quadro temático e formal sem
precedentes no cinema italiano. Também como em Bergman, é um filme
seguinte, “O Deserto Vermelho” (1964), que vem esclarecer, e a cores,
esse espaço de modernidade ocupado pelo cineasta: o de uma estética
baseada em linhas, volumes e agora também cores que se combinam com um
universo de sentimentos rarefeitos, de crise das relações sentimentais, e
com um tratamento distendido do tempo que, tal como a elaboração dos
ruídos, vem dos filmes anteriores. O tratamento não-realista da cor
passa a conferir maior dimensão estética à criação pessoal do autor.
Seguem-se as suas obras mais conhecidas, “História de um
Fotógrafo”/“Blow Up” (1966), rodado em Londres, “Deserto de
Almas”/“Zabriskie Point” (1970), filmado nos EUA, e o menos conhecido
documentário feito na China, “Chung-Kuo” (1972), até essa absoluta
obra-prima que é “Profissão: Repórter” (1974), em que a dúvida, a
ambiguidade que caracteriza o universo do cineasta atinge a sua
elaboração mais clara depois de “Blow Up” (em que questionara a
realidade e a possibilidade de a representar) na figura do duplo - o
equivalente de “A Máscara” em Bergman.
“O Mistério de Oberwald” (1980), com o seu uso pioneiro da
alta-definição no cinema, e “Identificação de uma Mulher” (1982), com a
sua perseguição do mistério feminino, são os filmes que antecedem o AVC
que incapacita parcialmente Antonioni em 1985, e são obras extremamente
pessoais e depuradas, sobretudo o segundo. Depois disso, só com o apoio
de Wim Wenders (honra lhe seja!) ele consegue fazer o filme em episódios
“Para Além das Nuvens” (1995) e o episódio “O Perigoso Fio das Coisas”
para outro filme em episódios, “Eros”, de 2004, para os quais utiliza
argumentos da sua autoria nunca filmados antes (5). Faz ainda quatro
documentários curtos, um dos quais sobre si próprio, “Lo Sguardo di
Michelangelo” (2004), e nos últimos anos de vida dedica-se à pintura,
que tal como o desenho praticava desde a infância.
Também
Michelangelo Antonioni teve participantes fulcrais nos seus filmes, eles
também frequentemente centrados na mulher e no par sentimental, de que
destacarei a actriz Monica Vitti, o co-argumentista Tonino Guerra, o
compositor Giovanni Fusco (até “O Deserto Vermelho”) e os directores de
fotografia Gianni Di Venanzo nos filmes a preto e branco e Carlo Di
Palma nos filmes a cores.
Ora tanto um cineasta, o sueco, como
o outro, o italino, têm igualmente em comum uma nova prática, moderna,
de exploração do espaço do plano (“A Máscara” e “Blow Up”) e novos
métodos de tratamento do fora de campo e de implicação do espectador: o
“olhar-câmara” de Harriet Andersson em “Mónica e o Desejo” e a “visita”
do velho professor ao passado em “Morangos Silvestres”, o
desaparecimento de Anna em “A Aventura” e a fotografia no parque em
“Blow Up”.
Não se pode entender a modernidade no cinema a
partir dos anos 50 do século passado sem conhecer os filmes destes dois
grandes fundadores dela, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, e os
do outro grande moderno de então, Orson Welles.
Os filmes
destes três grandes modernos significaram um avanço na estética
cinematográfica e no cinema “tout-court” que exigiu mesmo o aparecimento
de um novo olhar, de uma nova crítica de cinema e de uma novo
conceptualização dele que estivessem à altura das novidades que eles
trouxeram, o que não deixou de ser atravessado por acesa polémica já que
não vieram, como qualquer moderno, para criar unanimismos. E entre os
elementos decisivos da modernidade que lançaram conta-se a afirmação da
autoria cinematográfica sem qualquer ambiguidade, uma autoria pessoal
radical e inequívoca, que Bergman e Antonioni, à semelhança de Welles,
desde o início assumiram para si próprios e em benefício dos que vieram
depois.
Notas
(1) Edição portuguesa Editora Caravela, Lisboa, 1988.
(2) Alguns dos livros e argumentos de Ingmar Bergman deram origem a filmes: “As Melhores Intenções”, de Bille August (1992), “Crianças de Domingo”, do seu filho Daniel Bergman (1992), “Infidelidade”, de Liv Ullman (2000), nomeadamente.
(3) O documentário é um género raro e tardio em Bergman: “Färö-Dokument”, de 1969, e “Färö-Dokument 1979”, de 1979.
(4) Sobre o neo-realismo italiano, em geral, e a sua recepção em Portugual, nomeadamente pelos cine-clubes, em especial, é hoje fundamental “«A cidade das flores»: Para uma recepção cultural em Portugal do cinema neo-realista italiano como metáfora possível de uma ausência”, de Christel Henry, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Lisboa, 2006.
(5) Encontram-se publicados em português, sob a forma de contos, em “Quel Bowling Sul Tevere”, Einaudi, Turim, 1983 (“O Perigoso Fio das Coisas”, DIFEL, Lisboa, s/d), e sob a forma de argumentos, contos e guiões em “I film nel cassetto”, Marsilio Editori, 1995 (“Os Filmes na Gaveta”, Edições 70, Lisboa, 1997, 2001), não só os que aproveitou mas também muitos outros que nunca passaram a filme.
(1) Edição portuguesa Editora Caravela, Lisboa, 1988.
(2) Alguns dos livros e argumentos de Ingmar Bergman deram origem a filmes: “As Melhores Intenções”, de Bille August (1992), “Crianças de Domingo”, do seu filho Daniel Bergman (1992), “Infidelidade”, de Liv Ullman (2000), nomeadamente.
(3) O documentário é um género raro e tardio em Bergman: “Färö-Dokument”, de 1969, e “Färö-Dokument 1979”, de 1979.
(4) Sobre o neo-realismo italiano, em geral, e a sua recepção em Portugual, nomeadamente pelos cine-clubes, em especial, é hoje fundamental “«A cidade das flores»: Para uma recepção cultural em Portugal do cinema neo-realista italiano como metáfora possível de uma ausência”, de Christel Henry, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Lisboa, 2006.
(5) Encontram-se publicados em português, sob a forma de contos, em “Quel Bowling Sul Tevere”, Einaudi, Turim, 1983 (“O Perigoso Fio das Coisas”, DIFEL, Lisboa, s/d), e sob a forma de argumentos, contos e guiões em “I film nel cassetto”, Marsilio Editori, 1995 (“Os Filmes na Gaveta”, Edições 70, Lisboa, 1997, 2001), não só os que aproveitou mas também muitos outros que nunca passaram a filme.
Dezembro 2007
Excelente ideia. Irei aproveitar e estar atento. No mundo de hoje, é de saudar quem verdadeiramente quer partilhar com os outros. Muito obrigado e estarei por aqui.
ResponderEliminarSaudações, António Júlio Rebelo