Do romance de D. H. Lawrence “O
amante de Lady Chatterley” e das suas diferentes versões sabemos tudo.
De Pascale Ferran, realizadora de “Lady Chatterley”, filme francês de
2006 galardoado com cinco Césares, os prémios maiores do cinema francês,
não sabemos quase nada. E, no entanto, ela dirigira já, nomeadamente,
“Petits arrangements avec les morts”, de 1993, filme bem interessante
mas inédito em Portugal. Assim, este é o primeiro filme dela que estreia
entre nós, e ainda bem que estreia.
Baseando-se na segunda versão da obra de Lawrence, “Lady Chatterley e o
homem dos bosques”, a cineasta constrói não apenas uma bela obra
cinematográfica, no sentido da beleza visual e da composição visual e
sonora, como uma obra narrativamente muito interessante, permanentemente
a transmitir o lado transgressor que vem do romance em que se baseia. E
é neste caso fundamental ter em linha de conta a narrativa, já que de
imagens belas está o cinema, em geral, e o cinema francês, em especial,
cheio, e reduzir a elas um filme sobre a dita obra literária seria
sempre um risco, e um risco claramente a evitar.
Ora o que sucede com Pascale Ferran é que, como se fosse uma veterana
do cinema, que de certa maneira até é, ela se aplica em não ilustrar o
romance mas em criar o filme como se fosse uma obra original sua, sem
esquecer, no entanto, que está a trabalhar com um material narrativo
carregado de sentido. De facto, ela liberta-se de possíveis influências
cinematográficas e o que faz é interiorizar uma narrativa mítica
conservando toda a frescura dela, como se fosse sua, e criar a partir
dessa visão interior.
Desse modo, não surgem como visíveis os bordões literários, apesar dos quadros escritos que pontuam de quando em quando o filme, que se apresentam como perfeitamente justificados, e da voz-off narrativa que ocasionalmente se faz ouvir. O que acontece com este “Lady Chatterley” é que ele é criado sobre a obra literária e sobre o mito dela para nos dar uma perspectiva própria, de uma grande simplicidade e de uma estarrecedora construção fílmica, que ignora os lugares comuns do cinema para arriscar na dimensão humana das personagens e da situação que vivem, procurando de cada uma delas mais que o perfil arquétipo, que também dá, as nuances, as subtilezes, e evitando quer o registo melodramático quer o academismo, velha ameaça no cinema francês.
Desse modo, não surgem como visíveis os bordões literários, apesar dos quadros escritos que pontuam de quando em quando o filme, que se apresentam como perfeitamente justificados, e da voz-off narrativa que ocasionalmente se faz ouvir. O que acontece com este “Lady Chatterley” é que ele é criado sobre a obra literária e sobre o mito dela para nos dar uma perspectiva própria, de uma grande simplicidade e de uma estarrecedora construção fílmica, que ignora os lugares comuns do cinema para arriscar na dimensão humana das personagens e da situação que vivem, procurando de cada uma delas mais que o perfil arquétipo, que também dá, as nuances, as subtilezes, e evitando quer o registo melodramático quer o academismo, velha ameaça no cinema francês.
A reconstituição rigorosa
de época não merece qualquer tipo de objecção, como era de esperar, e
as personagens de Clifford e de Mrs. Bolton merecem uma atenção pouco
mais que circunstancial, sem pôr em causa a concentração da narrativa em
Constance Chatterly e Parkin. De facto, as outras personagens estão
presentes mas percebe-se com todos os sentidos, incluindo o olfacto, que
é por ela e por ele que passa o que de fundamental há neste filme e na
transgressão dele. Passa por eles por intermédio dela, acrescente-se,
porque é a ela que acompanhamos nas deslocações entre o castelo e a
cabana, e é dessa maneira, do ponto de vista dela, que acompanhamos os
encontros entre eles os dois
Cumplicidade feminina, dir-se-ia, que a autora assume deliberadamente,
mantendo o filme permanentemente num registo de sensibilidade dos dedos,
da pele, dos contactos físicos entre as duas personagens. Naturalmente
que isso beneficia este “Lady Chatterley”, retirando-lhe o lado
voyeurista que se poderia esperar (e recear) para lhe dar um carácter
eminentemente sensual e sexual, mas fora dos caminhos mais percorridos
pelo cinema nesta matéria. Tudo está no filme, inclusivamente o longo
tempo de espera depois de um encontro casual, as amarras que prendem a
protagonista ao marido, a dependência deste, a presença constante da
natureza, para que os encontros entre Connie e Parkin assumam toda a
dimensão que têm entre eles os dois, e é nesse percurso entre marido
inválido e amante que a acompanhamos a ela. Por vezes, em Parkin
surpreendemos também momentos de espanto, sempre misturados com uma
espécie de candura, que se considera habitualmente ser própria dos
grandes solitários, mas também eles fazem parte da relação de infinita
ternura que se estabelece entre eles. Uma ternura que parte da
cumplicidade física em que se baseia.
Desta forma, percebemos que uma relação tão íntima, que na época da
publicação do livro (anos 20 do século passado) suscitou reacções
escandalizadas que levaram à proibição dele, na sua passagem para o
cinema pelas mãos de Pascale Ferran assuma uma figuração tão
distintamente visual e sonora, jogando com as várias possibilidades
expressivas do cinema – e penso aqui na variação de escala dos planos e
na utilização do fora de campo, resultantes de um trabalho de
planificação muito elaborado, na utilização dos ruídos in e off, nos
planos vazios da natureza e do céu, mas também, e inevitavelmente, nos
actores, Marina Hands e Jean-Louis Coulloc’H. De facto, entre eles os
dois teve que se estabelecer a cumplicidade que passa para as
personagens, o que será sempre de evidenciar porque neste caso reside
nos actores a criação das personagens, sem que isso anule ou diminua a
criação da realizadora, permanente instigadora e cúmplice de ambos na
procura do gesto exacto, do momento certo, da expressão adequada, da
melhor colocação do equipamento de registo.
O que de mais secreto este filme nos transmite, mais que uma crítica
social implícita, que aliás permanece clara (1), é a abertura que se
verifica em cada uma das personagens a partir do seu encontro, do
aprofundamento das relações mútuas e da intimidade assim criada. Uma
abertura que se sente que é física mas é também interior, que lhes
permite abrirem-se um para o outro mas também cada um para si próprio -
e, no caso dela, até para a vida, o que com ele só acontece no diálogo
final -, embora de maneiras e com exteriorizações diferentes, que
acabam, porém, no mesmo banho de pura jubilação, de pura e simples celebração da vida.
Se visto por este lado, que está no filme e nos leva a sentir o cheiro
da terra e do sexo, a sentir o perfume da saciedade e da partilha sem
reservas, este “Lady Chatterley” torna-se uma experiência
cinematográfica muito gratificante, tanto mais quanto rara no cinema
actual e quanto conserva a carga transgressora do romance de que parte, a
de uma felicidade simples, humana, imediata, física, que, dure o que
durar, fica e marca e liga um ao outro os protagonistas muito mais que
qualquer ritual poderia alguma vez fazer. E dá-se até o caso de essa
relação feliz ser vivida apesar da instituição, neste caso matrimonial, e
contra um inválido, por isso merecedor de especial compaixão, o que até
faz parte da carga subversora do livro, que o filme conserva. A
passagem da transgressão para o exterior torna-se, aliás, mais clara na
segunda parte do filme, em que os jogos a que se entregam o marido e
Mrs. Bolton substituem a longa espera do início.
Depois
do fim, entre Connie e Parkin poderá haver o que houver ou não houver,
mas aquilo que viveram e que vimos, por simples e comezinho ficará como
um ponto de abertura e de circulação entre eles, sem necessidade de
explicações nem de metafísicas. Ali estiveram, ali viveram e foram,
daquela maneira, felizes. Interrogações podem sempre colocar-se, mas não
serão as que eles se colocam no final que verdadeiramente interessam?
Acrescente-se que o filme tem uma versão longa, destinada à televisão e
intitulada “Lady Chatterley et l’homme des bois”, com um início
diferente mas que joga essencialmente com o mesmo material fílmico a que
dá uma outra distribuição, embora contenha imagens novas e até suprima
outras. Ao trabalho de nova arrumação de várias cenas alia-se o
alongamento de algumas delas, Clifford e Mrs. Bolton assumem maior
relevo, percebemos melhor Constance. Aliás, a comparação entre as duas
versões permite aumentar a nossa admiração pelo trabalho da realizadora
no campo da montagem, que era já apreciável na versão filme mas chega na
versão longa ao requinte, até porque permite a comparação e perceber,
assim, o nível de elaboração atingido.
Nota
(1)
E para entender bem esta dimensão do filme tem todo o interesse ler o
que escreveu Gilles Deleuze sobre D. H. Lawrence em “Critique et
clinique” (Capítulo VI), actualmente disponível em português (“Crítica e
Clínica”, Século XXI, Lisboa, 2003).
Setembro 2007
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