“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Tempo de Cinema

      Depois do ciclo “3xHHH”, comissariado por Augusto M. Seabra (Culturgest, 16-20/05/2007), que permitiu a muitos um primeiro contacto com a obra de Hou Hsao-Hsien (n. 1947), um dos grandes cineastas de Taiwan que, juntamente com Edward Yang (1947-2007), esteve na origem de um novo cinema naquela ilha desde a década de 80 do século passado, estava preparado o caminho para que os seus filmes mais recentes estreassem entre nós.
      De facto, “Três Tempos”/”Three Times” (2005) e “A Viagem do Balão Vermelho”/”Le Voyage du Balon Rouge” (2007) tiveram estreia simultânea em Lisboa e permitiram não só o contacto com os últimos filmes de um grande cineasta quase totalmente desconhecido no nosso circuito comercial como também testar a hipótese formulada de que ele surge como o principal herdeiro e continuador da estética cinematográfica do japonês Yasujiro Ozu, que ganhara especial pertinência com “Café Lumière” (2003), homenagem expressa filmada por Hou no Japão. Por mim não seria necessário mais que confirmar a ideia que os filmes dele que conhecia me tinham já permitido formular. Vamos por partes.

      “Três Tempos” é um filme em três episódios interpretados pelos mesmos dois actores (Qi Shu e Chen Chang), um, “A Time for Love”, situado em 1966, outro, “A Time for Freedom”, situado em 1911, e o último, “A Time for Youth”, situado na actualidade, dos quais em especial o primeiro consegue transmitir toda a carga temporal de que decorre a emoção muito à maneira do cinema de Ozu. Sensível também nos outros dois, com as suas narrativas típicas em volta de duas personagens, diria que é de facto nesse episódio temporalmente intermédio, com que aliás o filme começa, que se sente mais conseguida a recuparação dos planos estáticos em que aparentemente nada acontece do cineasta de “Viagem a Tóquio”/”Tokyo Monogatari” (1953). No entanto, a cuidadosa reconstituição do episódio do início do século passado vem recordar-nos que  Hou Hsiao-Hsien é um mestre da reconstituição histórica e a trepidação do episódio da actualidade remete-nos, como o citado “Café Lumière”, para a cultura contemporânea de que o cineasta faz parte, e dão bem conta das variações de que ele é capaz à volta de um mesmo tema, o dos desencontros do par sentimental.
      Mas talvez seja “A Viagem do Balão Vermelho”, filmado em Paris a convite do Musée d’Orsay, que constitui a maior surpresa, na medida em que é aí que o cineasta homenageia em primeiro lugar Paris como capital do cinema através da referência expressa ao filme “O Balão Vermelho”/”Le Balon Rouge”, de Albert Lamorisse (1958).
      E é com delicadeza oriental que o filme se desenrola em volta do apartamento em que vivem mãe e filho (Juliette Binoche e Simon Iteanu), um espaço em que entra também uma chinesa (Fang Song) que vai tomar conta do filho, com a curiosidade de ter sido estudante de cinema. E se o filme gira à volta dos problemas de Suzanne/Binoche por causa dos vizinhos/inquilinos, do ex-marido ausente, dos amigos, do filho, do piano, da professora de piano, percebemos que naquele espaço e entre aquelas personagens é um tanto a história do próprio cinema que se desenrola, com as suas boas e más relações, com os seus espaços e tempos, imagens e ruídos, as suas relações familiares e profissionais, as suas boas e más vizinhanças e também com a sua representação fabulosamente dada pelo espectáculo de marionetas.
Se tudo flui com aparente simplicidade apesar dos problemas e dos imprevistos que surgem é porque Hou Hsiao-Hsien encara a vida naquele microcosmos como um filme e encara, consequentemente, o filme como o tempo que escorre naquele espaço entre aquelas personagens. Sabemos que há um antes e um depois mas aquilo que vemos porque nos é mostrado é o símile do espectáculo de marionetas, portanto o pedaço escolhido, com a sua regra e o seu jogo, da vida de hoje para nos ser oferecido como espectáculo de cinema (e a referência às marionetas não é acidental no cineasta de “O Mestre das Marionetas”/”The Puppetmaster”, de 1993).
      Ora a arte do cineasta reside em ligar tudo com a maior naturalidade, dando cada sobressalto das personagens com uma grande serenidade fílmica de modo a que sintamos cada peripécia por si mas também como peripécia de um espectáculo que consiste numa representação. Esse jogo que implica dois níveis, um de crença e outro de distanciamento, está muito curiosamente articulado no interior do filme a que duas atitudes, dois movimentos opostos nos ligam como espectadores – e o facto de a “baby-sitter” ter sido estudante de cinema duplica o efeito de representação dentro da representação.
      Do ponto de vista da narrativa pode dizer-se que “A Viagem do Balão Vermelho” é quase insignificante perante os padrões do cinema a que estamos habituados pelo cinema comercial, e é verdade. Como nos filmes de Yasujiro Ozu percebemos apenas que por aquelas imagens escorrem pedaços, pequenos pedaços – diria que rarefeitos – da vida de todos os dias: é apenas a vida que passa, o tempo dela, sem quase darmos por isso, com os seus pequenos dramas, os seus pequenos transtornos e os seus grandes desfazamentos, os seus rituais e espectáculos de que participamos, os seus hábitos, retornos e recomeços. É a vida vista como filme na capital do cinema. É o cinema a incluir as variedades em homenagem ao tempo decorrido desde 28 de Dezembro de 1895, quando ele surgiu pelas mãos dos irmãos Louis e Auguste Lumière no interior de uma sala e de um espectáculo de variedades. Em Paris, precisamente.
      Volte sempre, Hou Hsiao-Hsien. Consigo é sempre tempo (justo) de cinema.

Junho 2008

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