Ao adaptarem ao cinema o romance homónimo de Cormac McCarthy, os irmãos Joel e Ethan Coen marcaram um encontro fatal entre a literatura e o cinema. Na verdade, trata-se do encontro entre aquele que é considerado, juntamente com Philip Roth, o maior escritor norte-americano vivo e a mais notável parelha criativa do actual cinema americano.
Desta forma, “Este país não é para velhos”/”No Country for Old Men” (2007) só tem hipóteses de surpreender quem ou não conheça os romances do escritor ou não conheça os filmes dos dois cineastas, ou nem uns nem os outros. Mesmo assim, até os conhecedores de ambos têm a possibilidade de ficar extremamente agradados com o filme por toda uma série de razões: trata-se de uma adaptação fiel; a carga de desconcerto e de terror é mantida; a caracterização das personagens é convincente; os ambientes são extremamente bem recriados; a imagem permanece largo tempo numa penumbra acabrunhante, dando visualmente conta do estado de espírito das personagens, dos ambientes, designadamente naturais, em que elas se movem e do desconcerto do meio.
Num momento em que estamos quase todos habituados a identificar o cinema americano (leia-se, de Hollywood) com toda uma panóplia de vistosos efeitos visuias, sempre muito bem feitos e cada vez mais bem feitos, é extremamente gratificante verificar que continua a existir espaço para filmes como este, de uma espantosa simplicidade de meios e de formas (os efeitos visuais, que também tem, não levam a dizer o contrário), que permite conservar toda a rude brutalidade da obra de que parte. Longe do subliminar, os Coen arrastam-nos para o sublime.
Efectivamente, é como que o ritmo da escrita, descrições e diálogos, que os cineastas captam e transpõem sem concessões para o seu filme, desse modo impondo um novo classicismo ao estilo que vêm praticando, umas vezes com maior sucesso do que outras, desde a sua primeira longa-metragem, “Blood Simple” (1984). Para ser breve, direi que aqui eles regressam ao nível de “Fargo” (1996) e de “O Barbeiro”/”The Man That Wasn’t There” (2001) para o excederem numa narrativa mais brutal e menos protegida pelo “chapéu de chuva” dos géneros, que só poderia ser bem tratada com recurso a uma grande simplicidade e não do lado do excesso - precisamente uma simplicidade clássica.
Mas o que surpreende mais e mais pela positiva neste filme é a aliança entre uma planificação precisa, dinâmica, com frequentes movimentos laterais de câmara, que abrem o campo na horizontal, e com abundância de grandes-planos e de planos de pormenor, que permanentemente precisam, mostrando-o, o que temos para ver e, por isso, devemos ver, e uma estranha e muito feliz banda sonora de que a música está a maior parte do tempo ausente mas em que o campo sonoro está constantemente preenchido por ruídos, rumores (o vento, a respiração), raspares, pancadas, restolhares para além das palavras. Ora são estes dois elementos, a planificação cerrada, sempre certa, estabelecendo o melhor ponto de vista e a distância certa, e a banda sonora em que os diversos ruídos funcionam musicalmente, como música belíssima e que não cessa, são estes dois elementos, dizia, que imprimem ao filme uma dinâmica visual e sonora que diria clássica (pós-moderna, neo-clássica), pois são eles que definem a clareza do filme e permitem que melhor sobressaia, por contraste, a estranheza de personagens e situações. E as personagens são encarnadas na perfeição por actores excepcionais, sempre no registo certo em termos faciais, físicos, gestuais, de tom de voz, de expressão nos limites da inexpressividade, enquanto as situações são caracterizadas pela crueldade, pelo desencontro e pela crueza da descrição.
Deste modo, as próprias mortes, os assassinatos a sangue-frio (ou não – a moeda) de Chigurh não apresentam a beleza, mesmo se convulsiva, de certos clássicos nomeadamente do filme de gangsters e do filme negro, antes surgem como acontecimentos fatídicos ditados por uma razão indecifrável, se é que existente, o que torna a personagem uma figuração do destino, dessa mudança que aí vem, que aí está, e que seria vaidade julgarmos que podemos evitar. Aquele labirinto sem encontros, sem tangentes nem aproximações a não ser terminais em que as personagens se movem e a que a lei chega sempre tarde representa e substitui o labirinto indecifrável, indecidível a não ser em sonho – e mesmo assim… - em que todos, como se em pesadelo imponderável, nos movemos mesmo sem darmos por isso.
E não faltam os detalhes da narrativa literária, com os mais velhos, os mais novos, a racionalidade indecifrável (se existente) de Chigurh/Javier Bardem, a ganância do pequeno Llewelyn Moss/Josh Brolin, a sageza cansada de Ed Tom/Tommy Lee Jones, a serenidade de Loretta/Tess Harper, a ignorância de Carla Jean/Kelly Macdonald, a ligeireza excessiva de Carson Welles/Woody Harrelson, a violência dos engodos, a apetência pelo lucro fácil, a impotência da lei.
O tom de descalabro geral está muito bem dado em “Este país não é para velhos” dos Coen, sem que nada seja sublinhado a tintas excessivas – mesmo Chigurh é mesmo assim – que puxem ao patético, como em Martin Scorsese muito bem acontece, antes todo o excesso irrompe súbita e inexplicavelmente mas dir-se-ia que naturalmente naquele contexto, com culpas, culpados, meio propício, debilitação geral, sem sentimentalismos nem exibição das melhores intenções, antes mostrando as piores intenções, evidentemente. E todos sabemos que tudo é ficção mas percebemos como a ficção de Cormac McCarthy vai até ao cerne da realidade contemporânea.
Encontro fatal chamei ao dos Coen com o escritor, e no entanto encontro indispensável para percebermos uma realidade que permanentemente passa por nós sem dela darmos conta, uma realidade em que vivemos embora façamos de conta, e também para percebermos que o cepticismo sobre a América actual quando dado por olhos americanos tem um sabor de lucidez saudável quando não se deixa cegar pelo fascínio da terra da grande promessa e se mantém ao nível da fria crueza da vida e das coisas. O resto é entertainment, também necessário e às vezes muito bom. Mas “Este país não é para velhos” é um filme superior resultante da adaptação de um romance superior, e a isso chama-se grande cinema, grande arte.
Da beleza do filme – e insisto em chamar-lhe beleza – fazem parte integrante a fotografia de Roger Deakins, responsável por ela nos filmes dos cineastas desde “Barton Fink” (1991), e a música de Carter Burwell, responsável por ela nos filmes deles desde “Blood Simple” com excepção de “O Brother Where Ar’t Thou” (2000), embora esta só surja pontual mas estrategicamente antes do genérico final.
E virá a propósito referir que Cormac McCarthy tem seis livros traduzidos para português, o primeiro dos quais, “Belos Cavalos”, primeiro volume da “Trilogia da Fronteira”, adaptado ao cinema por Billy Bob Thornton (2000), e os outros cinco (“O Guarda do Pomar”, “Filho de Deus”, “Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste”, “A Estrada” e “Este país não é para velhos”) primorosamente traduzidos por Paulo Faria (todos editados pela Relógio D’Água), que são de leitura fascinante e perturbadora e nos dão conta do melhor da actual da literatura americana.
Junho 2008
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