“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 28 de janeiro de 2012

Nós por cá...

   Atravessam a noite de motorizadas em punho, formam gangs benignos, trocam experiências, vivências, sobretudo fora da escola (secundária). São rebeldes sem causa cuja fúria de viver não se satisfaz com o destino, traçado pelos pais, de uma escolaridade bem comportada e ambiciosa. A ambição deles é outra, viver o tempo que passa uns com os outros, curtir a juventude ao som dos ritmos do seu tempo. As luzes e os ruídos atravessam a noite. De dia eles fogem à rotina escola-casa sempre, e desse modo criam cumplicidades, laços pessoais (os figos, o bilhar), rivalidades e antipatias, mas assim nasce uma nova geração. Cumplicidades e rivalidades, laços e antipatias masculinas, esclareça-se.
   Na escola como em casa, Jota/Eduardo Frazão não conta com compreensão, com quem o entenda – isso só no grupo, e ele tem toda a energia, toda a vitalidade e alegria da sua idade. Percorre o espaço noite e dia com o seu gang ou contra outro, e com alguns partilha momentos de amizade mais próxima. O meio é pequeno, cidade grande/pequena em que basta virar várias esquinas para se lhe dar a volta ou voltar ao mesmo sítio. Há a sombra do arvoredo, há a corrente do rio, vento e sombra, água que corre, sol, noite e muita vontade de viver naqueles espaços uma vida inteira no tempo que passa numa idade que não volta. As palavras trocam-se como elementos de afecto ou de hostilidade, os gestos e as expressões dizem por vezes aquilo que as palavras não sabem, não podem, não deixam.
                       
    Contra a vida que tem em casa e na escola, Jota depara com uma frágil Margarida/Ana Moreira, de classe social diferente da sua, com ambiente diferente do seu, com experiência ela também diferente da dele, e esse encontro de acaso vai levá-lo a partilhar com ela uma nova experiência. A alegria e energia dele confrontam-se com o ensimesmamento dela e uma troca simples decorre entre os dois, sem outra aspiração a não ser aquela: estarem juntos, verem-se, falarem-se e assim viverem o tempo
que passa.
    Há uma pulsão de morte que os atravessa aos dois e os arrasta para o abismo que os espera? Talvez, mas tudo isso passa através das figuras deles, é mais sugerido que outra coisa: são sombras que atravessam os olhos, que rodeiam os seres. Aquela é uma juventude assombrada pela dádiva da vida e que não sabe muito bem o que fazer com ela a não ser vivê-la uns com os outros, uns contra os outros. A música, os ruídos, as luzes, a velocidade: é preciso andar, correr, para depois apreciar os momentos de paragem que são, no seu melhor, também de movimento, ruídos, música, luzes. Juventude em estado de espanto e de celebração, de fraternidade e de briga, também de paixão.
    Eles têm razão, eles têm sempre razão, especialmente quando e porque não sabem muito bem o que querem para depois: só o aqui e agora uns com os outros conta. Há uma bofetada paterna e um beijo de despedida, há a escola com os professores, a casa com os pais, mas nada quebra ou verga aquela energia. Por baixo da ponte correm as águas, por cima das águas passa a ponte, na margem Jota e Margarida se conhecem e ele tira-a da água que ali nem sequer era funda.
                                 
   “O Capacete Dourado”, de Jorge Cramez (2007), é um filme de geração, que fecha a chegada à realização da geração de Joaquim Canijo, Joaquim Leitão, Pedro Costa, Teresa Villaverde e Manuel Mozos com uma incrível confiança nos meios expressivos do cinema, com um sentimento geracional e uma interiorização de referências cinematográficas que explodem em sensações imediatas, em trocas simbólicas que decorrem à margem das instituições, muito bem retratadas e com interpretações “de peso”: Rita Blanco, Rogério Samora, Alexandra Lencastre, nomeadamente, em pequenas aparições que delimitam muito bem o quadro. A oposição de Jota e do pai/António Fonseca sinaliza um confronto admirável, físico e primitivo, num filme que manda primarismos psicologizantes às urtigas para falar de gente viva, e concreta, e naturalmente rebelde.
   Há o argumento de Rui Catalão e Carlos Mota, há um “fait-divers” de época, mas há sobretudo um fantástico Jorge Cramez que balança tudo aquilo que pode gerar um filme banal, telenovelesco, de maneira a criar uma absoluta obra-prima do cinema português em cores, música, ruídos, montagem a um ritmo assombroso. Não sei de que é que ele esteve todo este tempo à espera, mas se foi disto valeu inteiramente a pena. É que nada é gratuito em “O Capacete Dourado”, que apesar da velocidade nunca é vídeo-clip pois tem a sua musicalidade própria, plenamente cinematográfica, que acompanha uma coreografia dos corpos, especialmente das motos, uma musicalidade que neste caso sai da música mesmo e arrasta o filme para uma dimensão expressiva excepcional, que evidentemente não podia estar contida nas simples imagens separadas dele. É, assim, em termos visuais de uma extrema beleza e de um extremo rigor, e em termos sonoros de um grande acerto de escolhas modernas e de apropriadas referências clássicas, que Cramez cria um filme que marca um dos pontos mais altos do cinema português desde o início deste século e simultaneamente se destaca entre os dos outros cineastas da sua geração, na qual ele passa a ocupar, por direito próprio, um lugar de indiscutível relevo.

Dezembro 2007

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