“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 15 de janeiro de 2012

Festas de Verão

        “Aquele Querido Mês De Agosto”, de Miguel Gomes (2008), é um filme belíssimo, que utiliza os meios disponíveis para criar um “musical” arriscado mas conseguido.
       Conhecem-se as dificuldades que rodearam o filme e levaram à reconversão do projecto inicial num misto de documentário sobre os lugares e os habitantes e de ficção local. Com o engenho aguçado pelas dificuldades, Miguel Gomes filma, grava e trabalha imagens e sons de maneira a proceder a uma criação fílmica cativante e feliz, utilizando as suas próprias memórias da região, que assim decanta num filme que se centra no Verão, nas festas e namoros que o acompanham, em ritmo de musical, com documentário, drama, comédia e assombrosos silêncios.
        Festas de Verão, amores de Verão na região do Arganil. Que significa isto no filme? Significa coisas várias e não contraditórias.
       As festas do filme são festas populares que, decorrendo durante o mês de Agosto, visam também tornar mais propícia e evocativa a presença dos emigrantes que a região acolhe durante o regresso para férias. Esse facto confere-lhes um tom de rememoração, de recuperação temporária de um convívio que, por isso mesmo, se quer festivo. Mas o rio Alva mantém ao longo do filme e das festas dele um lugar primordial, ao actualizar através de uma “mecânica dos fluidos” a ligação entre quem está todo o ano e quem está temporariamente, entre quem vive separado no espaço durante a maior parte do ano e vai coincidir naquele espaço durante aquele breve tempo. O rio que corre e não deixa de passar remete para origens e experiências comuns, algumas das quais vão transparecer em relatos ouvidos ao longo do filme.


         Na música, nas canções, na dança, no foguetório verifica-se a reunião de tudo e de todos, do passado e do presente, fazendo das festas um ponto comum de referência a que todos regressam, em que todos se encontram e/ou reencontram, o que a parte documental do filme prepara e a ficção dele completa.
         Mas se a festa celebra alguma coisa ela também visa exorcizar algo, e aqui estabelece-se um dos paradoxos mais criadores do filme. Até porque as festas têm também um lado religioso, elas implicam o intuito de afastar para longe acontecimentos malfazejos, quando o certo é que a desordem sentimental e familiar vai eclodir precisamente no seu decurso, como contradição estabelecida durante um período que se pretende propiciatório. E ao estalar naquele momento e daquela forma, como rivalidade familiar, o conflito vai resultar do convívio, arrastando consigo corações despedaçados, como nas canções que se escutam, e o lado “musical” do filme.
         Por sua vez, e de forma inteiramente consistente, as noites da festa introduzem as figuras da inversão e da dupla negação, do encaixe e do desdobramento, num quadro de passagem e de queda que as águas do rio e os saltos da ponte esclarecem em termos que remetem para a profundidade mas também para a mudança, que a majestosa paisagem serrana, muito bem mostrada como espaço intocado da natureza (como o que permanece), parece negar.
         Tudo passa, passará como as águas do rio, mas também de tudo fica retida a memória do convívio, do conflito, da coincidência espacial e temporal de todos naquele Verão, que se espera todos possam repetir no seguinte. Cristalização da memória nas gerações, uma vez que, de maneira nada acidental, estamos perante relações sentimentais de claro recorte incestuoso, o que corresponde a uma importante tradição da ficção portuguesa, pelo menos. No fim, quem estava para partir acaba por ficar, enquanto os que partem esperam poder regressar, numa alteração propiciada pelo fogo que, purificador, vem tornar possível o que antes o não era e permitir desfazer um processo de substituição afectiva. As águas do Rio Alva, ao correrem, sugerem também um futuro de repetição e, talvez, de diferença.
         Contudo, um inequívoco travo da melancolia portuguesa atravessa todo o filme de Miguel Gomes, sintoma de algo que se quis e não se pôde alcançar, de alguma coisa (ou alguém) a que (ou a quem) se quis muito e se perdeu, o que lhe confere uma indizível (e portuguesa) tristeza, que passa nas canções populares e na ficção. Isso mesmo é também sinalizado pelo diálogo final entre o próprio Miguel Gomes e o director de som, o grande Vasco Pimentel, repreendido por aparecerem no filme sons fantasma, que não estavam lá, e que se justifica dizendo que gravou o que quis, os sons que lhe interessam, não os de uma realidade insignificante e tonta.
        Aliás, o dispositivo do filme a ser feito, do filme dentro do filme, com várias referências anteriores muito apropriadas e que esse final explicita para o exterior, como epílogo, impõe a distância justa que permite ao espectador dar-se bem conta da parte de jogo, de encenação, que a ficção assume, convidando-o ao distanciamento que a utilização de habitantes locais como actores já implicava. De facto, o recurso aos habitantes locais, mesmo na ficção, aliado às músicas populares, confere ao filme um tom de leveza que alivia o peso do drama do mesmo passo que assegura unidade e autenticidade às características locais, ao documentário imperfeito e à ficção mais que perfeita que se replicam e completam em tom de “musical”. Além disso, a palavra falada conta histórias pessoais, cantada comenta documentário e ficção, para o final estabelece a picardia, funcionando, assim, como um outro factor de unidade e autenticidade.


        As festas de Verão do filme visam o esquecimento do dia-a-dia e acabam por ser um acontecimento para recordar, porque de identificação e reconhecimento, e por isso para repetir sempre. Desenvolvem-se num espaço comum e nelas se reúnem elementos fundamentais de gregarismo e de pertença, motivo pelo qual se tornam propícias à eclosão dos conflitos sentimentais que resultam da identidade e a definem. Mostram-se como lugar e tempo de expressão de alegria e tristeza, de catarse por uma terra que não se teve a não ser de passagem, por uma felicidade não vivida a não ser por instantes, mas também como augúrio de um futuro, talvez diferente, para os mais novos. Estes podem, na verdade devem mesmo remover o que, sendo excessivo, injustificadamente os constrange, ao que a própria natureza, intacta, e a comunidade local, no respeito de tradições e rituais, os conjuram.
          E, esfuziante, transborda de “Aquele querido mês de Agosto” o prazer do cinema, ao som de canções populares durante festas populares, sem esquecer alusões cultas à história do cinema, como o Rossellini de “Viagem a Itália” (o milagre durante a procissão), de tal modo que dir-se-ia estarmos perante o culminar de um percurso pessoal que, todavia, ainda agora se inicia para Miguel Gomes.

Dezembro 2009

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