Após a estreia tardia de
“Corações”/”Coeurs”, de 2006, o mais recente filme de Alain Resnais, “As Ervas
Daninhas”/”Les herbes folles”, de 2009, tal como o anterior revela de maneira
muito clara a persistência do enorme talento criador do cineasta, um
contemporâneo da “nouvelle vague” francesa, na primeira década do novo século
regressado ao seu melhor nível.
De facto,
esta sua décima-sétima longa metragem de ficção - o que nem sequer é muito para
50 anos de actividade - serve de pretexto para o regresso do cineasta a alguns
dos seus temas favoritos que, de filme em filme, vem trabalhando com diversas variações,
gradações e nuances ao longo de toda
a sua obra: o acaso, a obsessão e o destino, mas também o real e o possível, o
actual e o virtual.
De maneira
sintomática, um filme que se inicia ao nível do solo - das ervas, dos pés e
sapatos - vai ser marcado por a protagonista pilotar aviões, o que vai mesmo
assinalar o final (ou um dos finais) dele.
Se é acidental o encontro de
Georges Palet/André Dussollier com Marguerite Muir/Sabine Azéma, já que ele
encontra a carteira que lhe tinha sido roubada a ela – acasos que geram
encontros ou o desejo de conhecer – a partir daí ele torna-se obcecado por ela e
estão lançados os elementos de uma narrativa minimal, em vago tom de comédia
mas fulgurante, do tipo daquelas a que Alain Resnais nos habituou já depois
desse filme-charneira que foi “Smoking”/”No Smoking”, de 1992, em que ele levou
às últimas consequências as premissas dos seus filmes iniciais, “Hiroshima, Meu
Amor”/”Hiroshima mon amour”, “O Último Ano em Marienbad”/”L’Année dernière à
Marienbad” e “Muriel”/”Muriel ou Le temps d’un retour”.
Como que de
regresso a uma nova simplicidade, o cineasta delicia-se e delicia-nos com a
atenção que dedica aos detalhes, aos pormenores que caracterizam cada um dos
protagonistas e as situações que atravessam, o que confere lhes confere uma
outra, mais concreta e definida dimensão. Que Georges seja casado e pai de
filhos apenas o torna um alvo involuntário mais vulnerável a investidas de
Cupido e Eros. Que Marguerite seja dentista e aviadora só a torna um objecto de
desejo mais apetecível. E para dar conta da improbabilidade deste par são-nos
dados a ver os pormenores mais delicados, como o embaraço dela na sapataria ou
o embaraço dele na esquadra de polícia, e os detalhes mais reveladores de cada
um deles, como quando ele ensaia a primeira conversa telefónica com ela
enquanto conduz ou ela se escapa aos seus deveres profissionais como se tivesse
mais que fazer, sem esquecer o inesperado contacto entre Marguerite e
Suzanne/Anne Consigny, a mulher de Georges e mãe dos filhos dele, a qual, por
sua vez, enfim…
Mas o filme
tem um momento-chave, que é o do primeiro encontro entre Georges e Marguerite,
à saída dele do cinema para onde Suzanne a encaminhara a ela, quando decorreu
já cerca de uma hora do filme, a parte mais longa dele. Aí, nessa saída do
cinema, percebe-se que a narrativa avança por uma possibilidade temporal, já
que mais tarde regressa repetidamente a imagem de Georges recuando para essa
saída da sala. Há no filme outros jogos de artifício, como as incrustações da
imagem, o flash-back da primeira ida de Marguerite à esquadra, as repetições na
visita dos dois polícias a Georges, mas esse, o da saída do cinema, é o momento
em que o filme abre para a possibilidade de que pelo menos tudo o que se vai
seguir não passe de um filme, de um sonho ou alucinação – ou então de um conto
infantil, como sugere o plano final.
Além disso, e envolvendo a primeira parte do
filme, uma misteriosa voz-off vai comentando o que acontece à medida que se
desenrola, o que imprime ao filme um tom de evocação do passado e o final vem
confirmar no seu imediatismo erótico e fatal, transformando uma aparente crónica
sentimental numa poderosíssima reflexão sobre o amor e a morte, um outro tema
que Alain Resnais tem perseguido ao longo da sua obra, em filmes como “Amor
Eterno”/“L’Amour à mort” e “Mélo”. Mas não existe apenas essa voz-off desconhecida durante a primeira
parte do filme, já que também um estranho e repetido monólogo interior de
Georges remete, durante ela, para algo de turvo no passado dele e nele próprio,
o que não passa, porém, de mera sugestão narrativa que não chega a ser claramente
explicada.
Por outro
lado, antes da queda final do pequeno avião, apenas sugerida pelo
desaparecimento dele do horizonte e pelo ruído, há uma espécie de falso final, quando Georges e Marguerite
caem nos braços um do outro no interior da aerogare e surge a palavra Fim pela primeira vez. Esse é um final de filme. O outro final, a seguir
à queda do avião e no plano a que se chega através de um labirinto rasgado pela
câmara para o lado contrário ao da queda dele, será, pois, um final de conto de
fadas – sinalizando uma infância enfim recuperada ou para sempre perdida.
Todavia,
como a primeira parte do filme, além de ser marcada pela já referida voz-off, omnisciente, é também
sistematicamente pontuada por encadeados a negro, talvez que participe, ela
também, do mesmo possível, virtual, que assim caracterizaria todo o filme a
partir do primeiro acidental incidente, o do roubo da mala. Desse modo todo
este notável “As Ervas Daninhas” poderá resolver-se como um filme, sonho,
alucinação ou então funesto conto de fadas, num prolongamento do indecidível que Alain Resnais
soberbamente sabe trabalhar.
Além disto, que não é pouco, que
é mesmo imenso, a presença de actores da dimensão de Emmanuelle Devos como
Josepha, a colega e amiga de Marguerite, falso duplo prosaico dela, e Mathieu
Amalric como Bernard de Bordeaux, o polícia, em papéis secundários - que como
que se limitam a testemunhar o que acontece aos protagonistas - confere ao
filme um inequívoco tom de obra invulgar, trabalhada em pleno até ao mais
ínfimo detalhe.
Quando se
pensa no longo percurso anterior do cineasta, percebe-se bem como primeiro
“Corações”, depois este “As Ervas Daninhas” nos devolvem, sob novas formas, uma
mestria original na obra de um dos mais importantes cineastas vivos da
actualidade que, sem lacrimejar nem apelar ao fácil e cómodo, aqui nos volta a
dizer coisas fundamentais de maneira simples mas também impiedosa, para mais
com recurso a dois dos seus actores de eleição, André Dussollier e Sabine
Azéma, de novo juntos e de novo portentosos.
Se existe
alguma coisa de faustiano neste filme, baseado no romance “L’Incident” de
Christian Gailly, que o próprio nome da protagonista, Marguerite, inculca, isso
mesmo é sublinhado pelo labiríntico final, após o desaparecimento do pequeno avião
e o ruído que se lhe segue - ruído esse que funciona, depois das inexplicadas
acrobacias, como um grito, simultaneamente orgiástico e de revolta. Também por
isso, o último filme de Alain Resnais é mais um ponto culminante numa obra em
que eles são a regra e em que o único motivo de estranheza são os longos, mas necessários
silêncios (os intervalos entre filmes) a que o cineasta se remete, sem que, no
entanto, se faça durante eles esquecer.
Dezembro 2010
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