“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 15 de janeiro de 2012

No topo


        Após a estreia tardia de “Corações”/”Coeurs”, de 2006, o mais recente filme de Alain Resnais, “As Ervas Daninhas”/”Les herbes folles”, de 2009, tal como o anterior revela de maneira muito clara a persistência do enorme talento criador do cineasta, um contemporâneo da “nouvelle vague” francesa, na primeira década do novo século regressado ao seu melhor nível.
        De facto, esta sua décima-sétima longa metragem de ficção - o que nem sequer é muito para 50 anos de actividade - serve de pretexto para o regresso do cineasta a alguns dos seus temas favoritos que, de filme em filme, vem trabalhando com diversas variações, gradações e nuances ao longo de toda a sua obra: o acaso, a obsessão e o destino, mas também o real e o possível, o actual e o virtual.
         De maneira sintomática, um filme que se inicia ao nível do solo - das ervas, dos pés e sapatos - vai ser marcado por a protagonista pilotar aviões, o que vai mesmo assinalar o final (ou um dos finais) dele.
 
        Se é acidental o encontro de Georges Palet/André Dussollier com Marguerite Muir/Sabine Azéma, já que ele encontra a carteira que lhe tinha sido roubada a ela – acasos que geram encontros ou o desejo de conhecer – a partir daí ele torna-se obcecado por ela e estão lançados os elementos de uma narrativa minimal, em vago tom de comédia mas fulgurante, do tipo daquelas a que Alain Resnais nos habituou já depois desse filme-charneira que foi “Smoking”/”No Smoking”, de 1992, em que ele levou às últimas consequências as premissas dos seus filmes iniciais, “Hiroshima, Meu Amor”/”Hiroshima mon amour”, “O Último Ano em Marienbad”/”L’Année dernière à Marienbad” e “Muriel”/”Muriel ou Le temps d’un retour”.
        Como que de regresso a uma nova simplicidade, o cineasta delicia-se e delicia-nos com a atenção que dedica aos detalhes, aos pormenores que caracterizam cada um dos protagonistas e as situações que atravessam, o que confere lhes confere uma outra, mais concreta e definida dimensão. Que Georges seja casado e pai de filhos apenas o torna um alvo involuntário mais vulnerável a investidas de Cupido e Eros. Que Marguerite seja dentista e aviadora só a torna um objecto de desejo mais apetecível. E para dar conta da improbabilidade deste par são-nos dados a ver os pormenores mais delicados, como o embaraço dela na sapataria ou o embaraço dele na esquadra de polícia, e os detalhes mais reveladores de cada um deles, como quando ele ensaia a primeira conversa telefónica com ela enquanto conduz ou ela se escapa aos seus deveres profissionais como se tivesse mais que fazer, sem esquecer o inesperado contacto entre Marguerite e Suzanne/Anne Consigny, a mulher de Georges e mãe dos filhos dele, a qual, por sua vez, enfim…
        Mas o filme tem um momento-chave, que é o do primeiro encontro entre Georges e Marguerite, à saída dele do cinema para onde Suzanne a encaminhara a ela, quando decorreu já cerca de uma hora do filme, a parte mais longa dele. Aí, nessa saída do cinema, percebe-se que a narrativa avança por uma possibilidade temporal, já que mais tarde regressa repetidamente a imagem de Georges recuando para essa saída da sala. Há no filme outros jogos de artifício, como as incrustações da imagem, o flash-back da primeira ida de Marguerite à esquadra, as repetições na visita dos dois polícias a Georges, mas esse, o da saída do cinema, é o momento em que o filme abre para a possibilidade de que pelo menos tudo o que se vai seguir não passe de um filme, de um sonho ou alucinação – ou então de um conto infantil, como sugere o plano final.
        Além disso, e envolvendo a primeira parte do filme, uma misteriosa voz-off  vai comentando o que acontece à medida que se desenrola, o que imprime ao filme um tom de evocação do passado e o final vem confirmar no seu imediatismo erótico e fatal, transformando uma aparente crónica sentimental numa poderosíssima reflexão sobre o amor e a morte, um outro tema que Alain Resnais tem perseguido ao longo da sua obra, em filmes como “Amor Eterno”/“L’Amour à mort” e “Mélo”. Mas não existe apenas essa voz-off desconhecida durante a primeira parte do filme, já que também um estranho e repetido monólogo interior de Georges remete, durante ela, para algo de turvo no passado dele e nele próprio, o que não passa, porém, de mera sugestão narrativa que não chega a ser claramente explicada.
         Por outro lado, antes da queda final do pequeno avião, apenas sugerida pelo desaparecimento dele do horizonte e pelo ruído, há uma espécie de falso final, quando Georges e Marguerite caem nos braços um do outro no interior da aerogare e surge a palavra Fim pela primeira vez. Esse é um final de filme. O outro final, a seguir à queda do avião e no plano a que se chega através de um labirinto rasgado pela câmara para o lado contrário ao da queda dele, será, pois, um final de conto de fadas – sinalizando uma infância enfim recuperada ou para sempre perdida.
          Todavia, como a primeira parte do filme, além de ser marcada pela já referida voz-off, omnisciente, é também sistematicamente pontuada por encadeados a negro, talvez que participe, ela também, do mesmo possível, virtual, que assim caracterizaria todo o filme a partir do primeiro acidental incidente, o do roubo da mala. Desse modo todo este notável “As Ervas Daninhas” poderá resolver-se como um filme, sonho, alucinação ou então funesto conto de fadas, num prolongamento do indecidível que Alain Resnais soberbamente sabe trabalhar.
 
          Além disto, que não é pouco, que é mesmo imenso, a presença de actores da dimensão de Emmanuelle Devos como Josepha, a colega e amiga de Marguerite, falso duplo prosaico dela, e Mathieu Amalric como Bernard de Bordeaux, o polícia, em papéis secundários - que como que se limitam a testemunhar o que acontece aos protagonistas - confere ao filme um inequívoco tom de obra invulgar, trabalhada em pleno até ao mais ínfimo detalhe.
        Quando se pensa no longo percurso anterior do cineasta, percebe-se bem como primeiro “Corações”, depois este “As Ervas Daninhas” nos devolvem, sob novas formas, uma mestria original na obra de um dos mais importantes cineastas vivos da actualidade que, sem lacrimejar nem apelar ao fácil e cómodo, aqui nos volta a dizer coisas fundamentais de maneira simples mas também impiedosa, para mais com recurso a dois dos seus actores de eleição, André Dussollier e Sabine Azéma, de novo juntos e de novo portentosos.
         Se existe alguma coisa de faustiano neste filme, baseado no romance “L’Incident” de Christian Gailly, que o próprio nome da protagonista, Marguerite, inculca, isso mesmo é sublinhado pelo labiríntico final, após o desaparecimento do pequeno avião e o ruído que se lhe segue - ruído esse que funciona, depois das inexplicadas acrobacias, como um grito, simultaneamente orgiástico e de revolta. Também por isso, o último filme de Alain Resnais é mais um ponto culminante numa obra em que eles são a regra e em que o único motivo de estranheza são os longos, mas necessários silêncios (os intervalos entre filmes) a que o cineasta se remete, sem que, no entanto, se faça durante eles esquecer.

Dezembro 2010

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