“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Diante da imagem

   Luzes, pequenas luzes no escuro atravessam lentamente um espaço negro na imagem num ecrã pequeno. Pontos luminosos indeterminados quando vistos à distância, como se fossem peixes no mar. Aproximo-me devagar e as coisas revelam-se com nitidez: são lanternas na cabeça de gente que se move no escuro. Não tão lentamente como me tinha parecido, pelo contrário.
   O que será que se movimenta no escuro em volta, no pequeno ecrã e na sala, pergunto-me.
   "A 5100 metros (16.700 ft), o extenso acampamento mineiro Andino em La Rinconada, no canto sudeste do Perú, pertíssimo da fronteira com a Bolívia, é o local mais elevado habitado no globo terrestre, albergando uma população de cerca de 30.000 indivíduos, na sua maioria desesperadamente pobres."
   Sabendo-o agora pergunto-me como será viver a tal altitude e percebo que aquela escuridão em volta é como uma pele que envolve ossos, vísceras da terra, que se acomodam a tudo em desconforto e grande privação: os seres que se movem sobre um solo irregular .
   "O plano fixo, sem som, filmado em La Compuerta, um dos principais acessos às bocas das minas, é uma assombrosa e misteriosa realidade etnográfica, onde um fluxo constante de mineiros, comerciantes e famílias, irrompem pela escuridão, desaparecendo no dentro e fora de campo. Uma ilusão que leva os homens à autodestruição, movidos pelos mesmos interesses, utilizando as mesmas ferramentas e os mesmos meios dos tempos antigos na contemporaneidade."
    As luzes e os vultos, os seres sobre cujos capacetes estão as luzes aparecem e desaparecem por todos os lados, numa caminhada sem fim que se renova, recomeça sempre como se voltasse ao princípio mas é sempre nova: em frente, subindo e descendo, surgindo para logo a seguir desaparecer.
                       
   "Mount Ananea (5853)" é uma instalação de Salomé Lamas, escrita, fotografada e realizada por ela para a Fundação de Serralves (2015), até 9 de Fevereiro de 2017 patente na Galeria Miguel Nabinho, em Lisboa, que contém excertos rodados "durante a fase de pesquisa e desenvolvimento (Setembro/Outubro 2014) da longa-metragem "Eldorado XXI" (2016)", Grande Prémio do Porto/Post/Doc de 2016, com estreia em Portugal prevista para Janeiro de 2017 - uma boa notícia.
   O plano fixo, sem som, faz-nos questionar sobre um formigar misterioso, funcionando como enigma, desafio lançado no presente ao espectador no seu conforto, também intelectual e moral. "Quase todas as minas e os mineiros lá são 'informais', um termo que os mais críticos consideram um eufemismo para ilegal. (Outros) preferem o termo 'artesanal'. As minas, ou o que quer que lhes chamemos, são pequenas, numerosas, não-regulamentadas, e, regra geral, imensamente inseguras." (William Finnegan in The New Yorker, 20 de Abril de 2015).     
   O efeito de concentração no espaço e de movimento contínuo desenrola-se  ao longo de 20 minutos, vídeo, HD transferido para  filme 16mm, cor, sem som, em loop, num ecrã pequeno, em que a concentração espacial, o movimento contínuo, o contraste das luzes que atravessam as trevas e percorrem o espaço impressionam e desconcertam, primeiro, cativam depois.  
   Que fazer com este filme em que passam diante de nós mineiros, comerciantes e famílias não identificados nem individualizados que não seja reconhecer a beleza de tudo e tentar descobrir um sentido onde ele não existe de forma patente. São formas, cores, luzes e muitas sombras com gente lá dentro. Sem narrativa, o efeito obtido é sobretudo estético. Com o conhecimento do que está em causa é também económico, social e político além de etnográfico.
   "A maioria (dos trabalhadores) não tem salários, muito menos benefícios, mas trabalham com um antigo sistema de trabalho chamado cachorreo. Este sistema é normalmente descrito como trinta dias de trabalho não remunerado, seguidos de um dia frenético em que os trabalhadores ficam com o ouro que conseguirem recolher para eles mesmos." (William Finnegan, citado).
   "Mount Ananea (5853)" está agora em Lisboa, o que me dá muito jeito porque não a vi em Serralves. Claro que Salomé Lamas é uma artista visual, performer e cineasta de quem toda gente fala, que está na moda, pelo que aqui se vê justificadamente, e vos interessa conhecer. Já responsável pelo documentário "Terra de Ninguém" (2012) e inúmeros outros trabalhos de performance e instalação, Salomé Lamas é muito definidamente um nome a reter e a seguir com toda a atenção.

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