“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 18 de dezembro de 2016

O artífice luminoso

   "Longe", o mais recente filme de José Oliveira (2016), na sua duração de encantados 37 minutos acompanha um homem de fora de Lisboa, do Minho, na sua chegada à grande cidade.
    Neste filme entra-se em Lisboa com chegada às cercanias de Vila Franca de Xira (não ao centro da cidade como em "Os Verdes Anos" de Paulo Rocha,1963, acontecia) e o caminho é feito a pé a partir daí. Esses caminhos de arredores e subúrbio - por uma vegetação exuberante, com o vento nas árvores, a água do rio, os comboios que passam a verem-se (e ouvirem-se além do chilrear dos pássaros), depois por quintalejos, entre estruturas metálicas gigantescas e pequenas ruínas -, que são também caminhos simbólicos, têm uma força e uma verdade primordial raras no cinema português.
                     Film
  Com a câmara fixa sem hesitar em reenquadrar os movimentos da personagem sempre que entende, o realizador acompanha a aproximação e a entrada na cidade de José Lopes, depois a sua travessia desta entre o ruído do trânsito por caminhos conhecidos, mais uma vez também simbólicos. Quando perguntara a um residente do subúrbio, à chegada, se ele mora ali há muito ele responde-lhe que há tanto tempo que não se lembra, mas a conversa com o amigo António à mesa dos copos, filmada lateralmente em dois planos, reforça a ideia inicial - o adeus à passagem do comboio - de que ele já ali estivera antes.              
  Depois de informado no orfanato e da compenetrada noite no bar, o protagonista apanha o comboio suburbano rumo ao destino que procura, e a seguir ao carrocel vazio e ao par de namorados é em dois planos tirados de fora, estarrecedores - um exterior casa/interior através da janela, o outro só através da janela -, com grande pudor que se dá o encontro dele com aquela que procurava. Após o que José Lopes de novo caminha a pé, agora ao afastar-se pelo desvio da auto-estrada até se perder no horizonte de betão e cimento num único plano.
                    Film
   Tudo simples e perfeito, até o espaço vazio da Casa do Minho em Lisboa ou o protagonista a cantar "Mataram A Pomba Branca" ao espelho, homem só como todos nós. Com ideias definidas de cinema, este filme segue-se na filmografia do cineasta a "35 Anos depois - O Movimento das coisas" (2015), sobre o grande e solitário filme de Manuela Serra (1979-1985), co-realizado com Mário Fernandes e Marta Ramos. 
   José Oliveira manifesta aqui uma grande sabedoria do cinema ao dar ao espectador o mínimo para que ele por si próprio o complete, nomeadamente a história daquele homem através do seu presente e dos elementos naturais, citadinos e humanos que o rodeiam (1). Mas não apenas isso, pois o realizador mantém a câmara à altura de José Lopes enquanto ele atravessa a cidade, o que permite dar o seu isolamento sem o esmagar, ao nível do próprio espaço que ele atravessa e com que se espanta. Mantendo-se à distância justa, sem dizer nada do seu passado José Oliveira permite compreender tudo do seu protagonista, uma vida contada no seu corpo, no seu rosto, no seu caminhar, na sua inscrição no espaço, nas suas escassas palavras.    
                     locarno                
   Voltando a dar excelente conta de si neste seu mais recente trabalho para cinema, José Oliveira destaca-se entre o que de mais importante está a acontecer com uma nova geração a que já chamaram invisível no cinema português. Com a particularidade de nada ter a ver com o parolo cinema festivo que domina entre nós, preferindo-lhe o trabalho de artífice, sério e sábio, com aqueles que conhece, os amigos. Excelente a fotografia de Manuel Pinto Barros, a montagem de Marta Ramos e do próprio José Oliveira, o som de Pedro Rufino com montagem de Bernardo Theriaga e mistura de Tiago Raposinho - os ruídos naturais, urbanos e humanos, a música no acordeão e aquela música surda nas escadas que não se sabe de onde vem. E grandes os actores na sua simplicidade despretensiosa, com José Lopes entre Chaplin e Keaton, Raul Solnado e António Reis mas sempre ele próprio, o outro.     

    Nota
    (1) Cf. "Pour un cinéma contemporain soustractif", de Antony Fiant (Presses Universitaires de Vincennes, 2014).

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