Estes são dois animais que fazem parte do bestiário de "Na Via Láctea"/"On the Milky Road", o mais recente filme de Emir Kusturica (2016), passado durante a guerra que acabou por separar em países soberanos aquilo que tinha sido após as guerras mundiais do Século XX a Jugoslávia. Este é, pois, um filme, um grande filme sobre uma guerra que, perante a posterior sucessão de outras, tendemos a esquecer já, mas que foi aquela que, terrível, tocou ao cineasta, natural de Sarajevo.
Dando vasão ao seu talento vulcânico, Emir Kusturica constrói um filme sobre o caos em que um pastor interpretado por si próprio acaba por fugir, depois do fim da guerra, com uma refugiada italiana, Mónica Bellucci, deixando assim para trás os dois irmãos que lhes estavam destinados para casamento, uma vizinha e amiga do primeiro e o irmão desta, militar regressado do Afeganistão.
O que no cineasta tem sido identificado como "realismo mágico" com traços surrealistas ganha ou recupera aqui uma nova dinâmica explosiva, situando o filme na Krajina, efémera "república sérvia" encravada na Croácia onde decorreram crimes atrozes durante a guerra, com cuja memória, incluindo a da intervenção das forças da ONU, ele assim ajusta contas. E aqui há que perceber a posição pró-sérvia de Kusturica.
Quem esperasse um Emir Kusturica cauteloso e equilibrado, como surgia em "Promessas"/"Zavet", 2007 (ver "Uma provocação de Kusturica", de 18 de Dezembro de 2016), sem dúvida um filme menor, ficará surpreendido com o seu regresso ao melhor do seu talento e da sua obra, magmática e proteiforme nos seus melhores filmes.
Com a presença elementar da natureza - esplêndida a mancha vermelha de sangue na água -, planos assombrosos - o travelling para cima que termina sobre o abismo -, um tratamento vívido da guerra e dos seus horrores até ao final, soberbo, com os protagonistas acossados no meio de um rebanho cercado por um campo de minas, e um trabalho com os actores, em que se inclui, em que puxa pelo seu melhor, o cineasta, que volta a trabalhar sobre argumento seu, dá aqui de novo a justa medida do seu enorme talento.
Só no epílogo, o pastor que interpreta é esmagado por um movimento ascendente de câmara enquanto arruma pedras no solo. O amor pelo qual lutara não tinha vencido mas ele não fora destruído. "Na Via Láctea" é um dos grandes filmes de um grande cineasta e um dos melhores filmes do ano.
Nota
Sobre o cineasta ver, por exemplo, "Le lexique subjectif d'Emir Kusturica - Portrait d'un realisateur", de Matthieu Dhennin (Lausanne: L'Âge d'Homme, 2006).
Com a presença elementar da natureza - esplêndida a mancha vermelha de sangue na água -, planos assombrosos - o travelling para cima que termina sobre o abismo -, um tratamento vívido da guerra e dos seus horrores até ao final, soberbo, com os protagonistas acossados no meio de um rebanho cercado por um campo de minas, e um trabalho com os actores, em que se inclui, em que puxa pelo seu melhor, o cineasta, que volta a trabalhar sobre argumento seu, dá aqui de novo a justa medida do seu enorme talento.
Só no epílogo, o pastor que interpreta é esmagado por um movimento ascendente de câmara enquanto arruma pedras no solo. O amor pelo qual lutara não tinha vencido mas ele não fora destruído. "Na Via Láctea" é um dos grandes filmes de um grande cineasta e um dos melhores filmes do ano.
Nota
Sobre o cineasta ver, por exemplo, "Le lexique subjectif d'Emir Kusturica - Portrait d'un realisateur", de Matthieu Dhennin (Lausanne: L'Âge d'Homme, 2006).
Sem comentários:
Enviar um comentário