Com um percurso pessoal
perfeitamente definido, que o transformou num "maverick" de
Hollywood, Robert Altman é neste momento um dos "veteranos" do cinema
americano.
Com uma obra que apenas se define a
partir de "MASH" (1970), que ele fez já com 45 anos (anteriormente
trabalhara para o cinema e para a televisão), Altman manteve ao longo das
últimas décadas do século passado uma actividade regular e meritória, com
momentos particularmente felizes, como o mítico "Nashville" (1975),
ou os seus grandes filmes dos anos noventa, "O Jogador"/"The
Player" (1992), "Os Americanos"/"Short Cuts" (1993), baseado em short stories de Raymond Carver, e "Pronto-a- Vestir"/"Prêt-à-porter" (1994).
Depois
de filmes estimáveis com que fez a transição de século, como "Caminhos Perigosos"/"The Gingerbread Man" (1998), "Quem Matou Cookie"/"Cookie's Fortune" (1999) e "Dr. T and the
Women" (2000, sem estreia comercial entre nós), o cineasta arriscou
lançar-se num projecto ousado, apresentado como algo próximo de um filme
mitológico da história do cinema, "A Regra do Jogo"/"La règle du
jeu", de Jean Renoir (1939). Tem por título "Gosford Park" (2001)
e é uma obra coral sinfónica, querendo eu dizer com isto que é um filme com
múltiplas personagens, todas elas com papel importante na narrativa fílmica e
interpretadas por grandes actores, narrativa essa cuja acção decorre num espaço
circunscrito, uma mansão, e num espaço de tempo determinado, o de uma visita
feita aos donos da mansão para participar numa caçada. Se a multiplicidade de
personagens, que origina uma variedade de sub-narradores, tem antecedentes de
vulto na obra do cineasta, que tiveram consequências no cinema americano, nomeadamente
em Paul Thomas
Anderson, já a rígida e rigorosa distinção entre senhores e
servos pode considerar-se como procedente do citado filme de Jean Renoir, em que Altman se inspira
livremente (o outro grande cineasta que trabalhou a dialéctica do senhor e do
servo de forma superior foi Joseph Losey).
Corre em Inglaterra
o ano de 1932 quando os convidados chegam à mansão rural que dá o título ao filme e são
recebidos pelos donos da casa, Sir William McCordle/Michael Gambon e Lady
Sylvia McCordle/Kristin Scott Thomas. Cada convidado apresenta a sua
particularidade própria bem definida, para além de ter em comum um facto
notório: ser acompanhado(a) por um(a) criado(a), que se perde entre os criados e
mordomos da própria mansão, os quais se movem na parte inferior desta, enquanto
a parte superior dela, nobre, é destinada a suas senhorias. Mais: cada
criado(a) é identificado(a) não pelo seu nome mas pelo daquele(a) que serve. A
regra do jogo, estabelecida desde o início do filme, não podia ser mais clara.
No
desenvolvimento das sub-intrigas cruzam-se os mais nobres e os mais plebeus dos
convidados, os ingleses e os americanos, os ricos e os pobres, os senhores e os
serviçais. O tom aparentemente ligeiro com que é tratada a futilidade dos
primeiros, que acaba inevitavelmente por contaminar os segundos, vem a
revelar-se o mais adequado para nos transmitir o entrelaçar de personagens e
intrigas, como se Robert Altman quisesse dar-nos um pouco de cada uma de forma
a que nós possamos, por nós próprios, completar o mosaico. A referência ao mundo
do cinema, que passa por três personagens, o produtor/Bob Balaban, o actor Ivor
Novello/Jeremy Northam e o "infiltrado" Henry Denton/Ryan Phillippe,
justifica-se tanto melhor quanto eles são os "outros", os
"americanos", e o segundo é muito popular em especial entre as
habitantes do piso inferior, do mesmo modo que a caracterização dos convidados
mais distintos encontra o seu adequado complemento no(a) servo(a) respectivo(a).
Tal
como em "A Regra do Jogo", morre-se em "Gosford Park" e
morre-se assassinado por razões que se prendem com a actividade industrial a
que se dedica McCordle, isto é, pelas relações que entre os senhores e os
servos se estabelecem fora dos limites da mansão senhorial. Mrs. Wilson/Helen
Mirren e Mrs. Croft/Eileen Atkins, as irmãs operárias, transportam consigo o
segredo do que vem a estar na origem do crime, enquanto o estilo da relação de
William McCordle se transferiu para Elsie/Emily Watson, o que se torna
evidente numa das mais notáveis sequências do filme. Do outro lado, Lady Sylvia
e Lady Louisa/Geraldine Sommerville, as irmãs aristocratas, não fazem segredo
sobre a forma que usaram para decidir qual delas casaria com o homem da fortuna
e com a fortuna do homem.
Conduzidos
por Mary/Kelly Macdonald, a camareira de Constance, Condessa de Trentham/Maggie
Smith, somos introduzidos no interior dos espaços e das narrativas com grande
mestria por Robert Altman, que nos faz serpentear pelos salões, cirandar
no interior dos quartos e cozinhas, acompanhar os senhores na prática do seu
desporto favorito. Assim percebemos o que ali está em jogo, o que irradia como
um vírus da personagem de Sir William por forma que a todos contamina e que
acaba por se virar contra ele: as relações sociais numa sociedade dividida em classes. Ora é isto o que a "mise en scène"
de Altman, não só não escamoteia, mas envolve num olhar crítico para que nós,
espectadores, não percamos nada do que se passa nem do que é aludido como tendo
acontecido.
A elegância formal do filme serve,
assim, um propósito claro, atingido com desenvoltura e sem complacência, que consiste em revelar o que subjaz à mais feliz e harmónica das aparências.
A construção fílmica, aparentemente caótica, não tem nada de arbitrário, e
desse modo cada plano, cada sequência, cada movimento de câmara obedece a um
propósito específico, tanto narrativa como expressivamente. Enquanto subimos e
descemos escadas estamos a aceder ao interior de um microcosmos que se mostra
perfeitamente revelador de uma sociedade, do seu espírito e da sua realidade.
Coral sinfónico chamei a "Gosford
Park" por isso mesmo, porque na diversidade de personagens e intrigas
cada uma preenche a sua função específica e dessa forma contribui para o todo
que é o filme, fazendo dele uma obra belíssima e contundente, a colocar ao lado
do que de melhor se faz actualmente no cinema. E ver Camilla Rutherford, Alan
Bates e Richard E. Grant, por exemplo, em papéis de composição, que preenchem um
lugar definido no arranjo do todo, dá bem a dimensão da ousadia do projecto e de
como o seu objectivo foi atingido de forma superior em termos fílmicos e em termos humanos.
Dezembro 2006
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