“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 10 de março de 2012

Coral sinfónico


           Com um percurso pessoal perfeitamente definido, que o transformou num "maverick" de Hollywood, Robert Altman é neste momento um dos "veteranos" do cinema americano.
           Com uma obra que apenas se define a partir de "MASH" (1970), que ele fez já com 45 anos (anteriormente trabalhara para o cinema e para a televisão), Altman manteve ao longo das últimas décadas do século passado uma actividade regular e meritória, com momentos particularmente felizes, como o mítico "Nashville" (1975), ou os seus grandes filmes dos anos noventa, "O Jogador"/"The Player" (1992), "Os Americanos"/"Short Cuts" (1993), baseado em short stories de Raymond Carver, e "Pronto-a- Vestir"/"Prêt-à-porter" (1994).

                                
    Depois de filmes estimáveis com que fez a transição de século, como "Caminhos Perigosos"/"The Gingerbread Man" (1998), "Quem Matou Cookie"/"Cookie's Fortune" (1999) e "Dr. T and the Women" (2000, sem estreia comercial entre nós), o cineasta arriscou lançar-se num projecto ousado, apresentado como algo próximo de um filme mitológico da história do cinema, "A Regra do Jogo"/"La règle du jeu", de Jean Renoir (1939). Tem por título "Gosford Park" (2001) e é uma obra coral sinfónica, querendo eu dizer com isto que é um filme com múltiplas personagens, todas elas com papel importante na narrativa fílmica e interpretadas por grandes actores, narrativa essa cuja acção decorre num espaço circunscrito, uma mansão, e num espaço de tempo determinado, o de uma visita feita aos donos da mansão para participar numa caçada. Se a multiplicidade de personagens, que origina uma variedade de sub-narradores, tem antecedentes de vulto na obra do cineasta, que tiveram consequências no cinema americano, nomeadamente em Paul Thomas Anderson, já a rígida e rigorosa distinção entre senhores e servos pode considerar-se como procedente do citado filme de Jean Renoir, em que Altman se inspira livremente (o outro grande cineasta que trabalhou a dialéctica do senhor e do servo de forma superior foi Joseph Losey).
      Corre em Inglaterra  o ano de 1932 quando os convidados chegam à mansão rural que dá o título ao filme e são recebidos pelos donos da casa, Sir William McCordle/Michael Gambon e Lady Sylvia McCordle/Kristin Scott Thomas. Cada convidado apresenta a sua particularidade própria bem definida, para além de ter em comum um facto notório: ser acompanhado(a) por um(a) criado(a), que se perde entre os criados e mordomos da própria mansão, os quais se movem na parte inferior desta, enquanto a parte superior dela, nobre, é destinada a suas senhorias. Mais: cada criado(a) é identificado(a) não pelo seu nome mas pelo daquele(a) que serve. A regra do jogo, estabelecida desde o início do filme, não podia ser mais clara.
                                
      No desenvolvimento das sub-intrigas cruzam-se os mais nobres e os mais plebeus dos convidados, os ingleses e os americanos, os ricos e os pobres, os senhores e os serviçais. O tom aparentemente ligeiro com que é tratada a futilidade dos primeiros, que acaba inevitavelmente por contaminar os segundos, vem a revelar-se o mais adequado para nos transmitir o entrelaçar de personagens e intrigas, como se Robert Altman quisesse dar-nos um pouco de cada uma de forma a que nós possamos, por nós próprios, completar o mosaico. A referência ao mundo do cinema, que passa por três personagens, o produtor/Bob Balaban, o actor Ivor Novello/Jeremy Northam e o "infiltrado" Henry Denton/Ryan Phillippe, justifica-se tanto melhor quanto eles são os "outros", os "americanos", e o segundo é muito popular em especial entre as habitantes do piso inferior, do mesmo modo que a caracterização dos convidados mais distintos encontra o seu adequado complemento no(a) servo(a) respectivo(a).
      Tal como em "A Regra do Jogo", morre-se em "Gosford Park" e morre-se assassinado por razões que se prendem com a actividade industrial a que se dedica McCordle, isto é, pelas relações que entre os senhores e os servos se estabelecem fora dos limites da mansão senhorial. Mrs. Wilson/Helen Mirren e Mrs. Croft/Eileen Atkins, as irmãs operárias, transportam consigo o segredo do que vem a estar na origem do crime, enquanto o estilo da relação de William McCordle se transferiu para Elsie/Emily Watson, o que se torna evidente numa das mais notáveis sequências do filme. Do outro lado, Lady Sylvia e Lady Louisa/Geraldine Sommerville, as irmãs aristocratas, não fazem segredo sobre a forma que usaram para decidir qual delas casaria com o homem da fortuna e com a fortuna do homem.
                                 
   Conduzidos por Mary/Kelly Macdonald, a camareira de Constance, Condessa de Trentham/Maggie Smith, somos introduzidos no interior dos espaços e das narrativas com grande mestria por Robert Altman, que nos faz serpentear pelos salões, cirandar no interior dos quartos e cozinhas, acompanhar os senhores na prática do seu desporto favorito. Assim percebemos o que ali está em jogo, o que irradia como um vírus da personagem de Sir William por forma que a todos contamina e que acaba por se virar contra ele: as relações sociais numa sociedade dividida em classes. Ora é isto o que a "mise en scène" de Altman, não só não escamoteia, mas envolve num olhar crítico para que nós, espectadores, não percamos nada do que se passa nem do que é aludido como tendo acontecido.
       A elegância formal do filme serve, assim, um propósito claro, atingido com desenvoltura e sem complacência, que consiste em revelar o que subjaz à mais feliz e harmónica das aparências. A construção fílmica, aparentemente caótica, não tem nada de arbitrário, e desse modo cada plano, cada sequência, cada movimento de câmara obedece a um propósito específico, tanto narrativa como expressivamente. Enquanto subimos e descemos escadas estamos a aceder ao interior de um microcosmos que se mostra perfeitamente revelador de uma sociedade, do seu espírito e da sua realidade.
                                                       
      Coral sinfónico chamei a "Gosford Park" por isso mesmo, porque na diversidade de personagens e intrigas cada uma preenche a sua função específica e dessa forma contribui para o todo que é o filme, fazendo dele uma obra belíssima e contundente, a colocar ao lado do que de melhor se faz actualmente no cinema. E ver Camilla Rutherford, Alan Bates e Richard E. Grant, por exemplo, em papéis de composição, que preenchem um lugar definido no arranjo do todo, dá bem a dimensão da ousadia do projecto e de como o seu objectivo foi atingido de forma superior em termos fílmicos e em termos humanos.

Dezembro 2006

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