Nos mais diversos registos, David Cronenberg tem tratado ao longo da sua obra a esquizofrenia da sociedade contemporânea, que com a sua velocidade, a sua ganância, a sua irracionalidade e complexidade proliferante como que divide não só as próprias sociedades como cada um dos seus membros - uma sociedade em que, contudo, uma, diferentes modernidades nasceram e fizeram/fazem o seu curso. Avultarão, sob esse ponto de vista, "Irmãos Inseparáveis"/"Dead Ringers" (1988), "O Festim Nu"/"Naked Lunch" (1991), "M. Butterfly" (1993) e "Crash" (1996), nomeadamente.
Em
"Spider" (2002) o cineasta investe pela primeira vez de forma directa
uma personagem esquizofrénica, sem as pretensões
moralizadoras mostradas sobre o assunto por outros filmes recentes, famosos e
premiados. Ao fazê-lo, aceita um projecto que lhe foi proposto, quando
normalmente parte de materiais narrativos escolhidos por si, projecto que
acaba, porém, por fazer totalmente seu, ao apropriar-se do tema, da personagem,
da narrativa e do filme.
Dennis
Clegg/Ralph Fiennes é um psicótico que, depois de 20 anos de internamento psiquiátrico, vive numa casa de transição dobrado sobre si próprio e sobre o seu passado,
solitário, mergulhado nos meandros de uma memória afectiva mas dilacerada, que o
marca e dele se apodera. Ora, enquanto o acompanhamos na cidade na actualidade, são-nos dados
flashes de recordações da sua infância, com os pais, interpretados por Gabriel
Byrne e Miranda Richardson. Muito habilmente, David Cronenberg faz alternar o
passado e o presente, situando neste a casa em que Dennis vive, os
seus outros habitantes e, em especial, a sua directora, Mrs. Wilkinson/Lynn Redgrave, enquanto no passado
temos acesso ao Dennis-criança/Bradley Hall, mas frequentemente acompanhado pelo Dennis-adulto, em busca, quiçá, de uma verdade oculta e esquecida que lhe permita descobrir-se a si próprio.
Deste
modo, o que ele recorda recobre aquilo que de facto aconteceu, colocando a
personagem perante os paradoxos da sua própria memória e da realidade dos factos, o que arrasta o espectador. E então
ficamos verdadeiramente presos ao filme, não sabendo o que mais admirar: se a
excelente composição de Ralph Fiennes, se o portentoso trabalho de
Miranda Richardson numa interpretação dupla, se a prodigiosa "mise en scène" de David
Cronenberg, toda ela elaborada sobre planos fixos ou de escassa mobilidade, em
especial na parte inicial do filme, por forma que replica a personalidade e a
circunstância do protagonista.
A
partir de material alheio, repito, o argumento do também canadiano
Patrick McGrath baseado no seu próprio romance, o cineasta recria com
austeridade e rigor a personagem na actualidade, a sua história ou a sua
memória, desde o caderno de apontamentos que permanentemente o acompanha e o que ele vai apanhando do chão até
aos ambientes, o da actualidade e o da sua infância no East End londrino.
Kafkiano disse-se, e bem, se atendermos a que grande parte da obra de
Cronenberg é atravessada pelo autor de "A Metamorfose" - veja-se, por todos, "A Mosca"/"The Fly", 1986 - , neste caso em
particular pela natureza fragmentária da personagem e das
suas recordações. Ora se tivermos em consideração que o carácter fragmentário
atravessa grandes narrativas, literárias ou cinematográficas, recentes, de modo a transformá-las em múltiplas pequenas narrativas, poderemos
verificar como este "Spider" replica tanto o universo pessoal do seu
protagonista como a vida e a narrativa contemporâneas, num multifacetado e siderante
jogo de espelhos.
Para mais, e perturbadoramente, não sabemos o que do passado do protagonista corresponde à realidade ou é construção sua, em réplica atormentada da história das teias de aranha que a mãe lhe contava na infância, essa mãe sobre cuja morte recai a sua principal atenção. Dessa maneira o filme constrói-se e cria o seu mistério, que é também o mistério do protagonista na sua regressão, e permanentemente nos desafia.
Para mais, e perturbadoramente, não sabemos o que do passado do protagonista corresponde à realidade ou é construção sua, em réplica atormentada da história das teias de aranha que a mãe lhe contava na infância, essa mãe sobre cuja morte recai a sua principal atenção. Dessa maneira o filme constrói-se e cria o seu mistério, que é também o mistério do protagonista na sua regressão, e permanentemente nos desafia.
Assim,
ao aceitar este projecto David Cronenberg não vendeu a alma ao diabo, como por
certo não teria vendido se tivesse aceitado fazer a sequela de "Instinto Fatal"/"Basic Instinct" (Paul Verhoven, 1992), para que foi convidado por Hollywood - e que não aceitou.
Como autor cinematográfico que é, o canadiano deixa a sua marca temática e
estilística em tudo aquilo que toca, o que faz com que "Spider", na
sua complexidade evidente mas fascinante, que pretende aceder a algo de muito simples e primitivo, ocupe naturalmente o lugar que lhe cabe, um lugar
destacado e perturbador, na obra dele. As sombras e os fantasmas que assombram Dennis Clegg
são em tudo semelhantes aos que sobressaltam e perseguem os protagonistas dos
outros filmes do cineasta, o que faz dele um dos nomes cimeiros do cinema
actual, possuidor de um universo pessoal perfeitamente coerente e de uma estilística própria, elaborada e consistente, que permanentemente nos desafiam e inquietam.
Dezembro 2006
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