“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 4 de março de 2012

Os sótãos da memória


     Nos mais diversos registos, David Cronenberg tem tratado ao longo da sua obra a esquizofrenia da sociedade contemporânea, que com a sua velocidade, a sua ganância, a sua irracionalidade e complexidade proliferante como que divide não só as próprias sociedades como cada um dos seus membros - uma sociedade em que, contudo, uma, diferentes modernidades nasceram e fizeram/fazem o seu curso. Avultarão, sob esse ponto de vista, "Irmãos Inseparáveis"/"Dead Ringers" (1988), "O Festim Nu"/"Naked Lunch" (1991), "M. Butterfly" (1993) e "Crash" (1996), nomeadamente.
         Em "Spider" (2002) o cineasta investe pela primeira vez de forma directa uma personagem esquizofrénica, sem as pretensões moralizadoras mostradas sobre o assunto por outros filmes recentes, famosos e premiados. Ao fazê-lo, aceita um projecto que lhe foi proposto, quando normalmente parte de materiais narrativos escolhidos por si, projecto que acaba, porém, por fazer totalmente seu, ao apropriar-se do tema, da personagem, da narrativa e do filme.
                                      
    Dennis Clegg/Ralph Fiennes é um psicótico que, depois de 20 anos de internamento psiquiátrico, vive numa casa de transição dobrado sobre si próprio e sobre o seu passado, solitário, mergulhado nos meandros de uma memória afectiva mas dilacerada, que o marca e dele se apodera. Ora, enquanto o acompanhamos na cidade na actualidade, são-nos dados flashes de recordações da sua infância, com os pais, interpretados por Gabriel Byrne e Miranda Richardson. Muito habilmente, David Cronenberg faz alternar o passado e o presente, situando neste a casa em que Dennis vive, os seus outros habitantes e, em especial, a sua directora, Mrs. Wilkinson/Lynn Redgrave, enquanto no passado temos acesso ao Dennis-criança/Bradley Hall, mas frequentemente acompanhado pelo Dennis-adulto, em busca, quiçá, de uma verdade oculta e esquecida que lhe permita descobrir-se a si próprio.
    Deste modo, o que ele recorda recobre aquilo que de facto aconteceu, colocando a personagem perante os paradoxos da sua própria memória e da realidade dos factos, o que arrasta o espectador. E então ficamos verdadeiramente presos ao filme, não sabendo o que mais admirar: se a excelente composição de Ralph Fiennes, se o portentoso trabalho de Miranda Richardson numa interpretação dupla, se a prodigiosa "mise en scène" de David Cronenberg, toda ela elaborada sobre planos fixos ou de escassa mobilidade, em especial na parte inicial do filme, por forma que replica a personalidade e a circunstância do protagonista.
                                    
      A partir de material alheio, repito, o argumento do também canadiano Patrick McGrath baseado no seu próprio romance, o cineasta recria com austeridade e rigor a personagem na actualidade, a sua história ou a sua memória, desde o caderno de apontamentos que permanentemente o acompanha e o que ele vai apanhando do chão até aos ambientes, o da actualidade e o da sua infância no East End londrino. Kafkiano disse-se, e bem, se atendermos a que grande parte da obra de Cronenberg é atravessada pelo autor de "A Metamorfose" - veja-se, por todos, "A Mosca"/"The Fly", 1986 - , neste caso em particular pela natureza fragmentária da personagem e das suas recordações. Ora se tivermos em consideração que o carácter fragmentário atravessa grandes narrativas, literárias ou cinematográficas, recentes, de modo a transformá-las em múltiplas pequenas narrativas, poderemos verificar como este "Spider" replica tanto o universo pessoal do seu protagonista como a vida e a narrativa contemporâneas, num multifacetado e siderante jogo de espelhos.
      Para mais, e perturbadoramente, não sabemos o que do passado do protagonista corresponde à realidade ou é construção sua, em réplica atormentada da história das teias de aranha que a mãe lhe contava na infância, essa mãe sobre cuja morte recai a sua principal atenção. Dessa maneira o filme constrói-se e cria o seu mistério, que é também o mistério do protagonista na sua regressão, e permanentemente nos desafia.
        Assim, ao aceitar este projecto David Cronenberg não vendeu a alma ao diabo, como por certo não teria vendido se tivesse aceitado fazer a sequela de "Instinto Fatal"/"Basic Instinct" (Paul Verhoven, 1992), para que foi convidado por Hollywood - e que não aceitou. Como autor cinematográfico que é, o canadiano deixa a sua marca temática e estilística em tudo aquilo que toca, o que faz com que "Spider", na sua complexidade evidente mas fascinante, que pretende aceder a algo de muito simples e primitivo, ocupe naturalmente o lugar que lhe cabe, um lugar destacado e perturbador, na obra dele. As sombras e os fantasmas que assombram Dennis Clegg são em tudo semelhantes aos que sobressaltam e perseguem os protagonistas dos outros filmes do cineasta, o que faz dele um dos nomes cimeiros do cinema actual, possuidor de um universo pessoal perfeitamente coerente e de uma estilística própria, elaborada e consistente, que permanentemente nos desafiam e inquietam.

Dezembro 2006

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