O primeiro filme de Christopher
Nolan a estrear entre nós, "Memento" (2000), foi uma boa surpresa e
a revelação de um novo cineasta talentoso e inventivo, embora o filme possa ser
considerado um "exercício de estilo" mais do que outra coisa. Mesmo assim é uma obra simpática e bem esgalhada,
que não pretende ser mais do que aquilo que é nem enganar o espectador: uma vez
exposto o seu programa narrativo e estético, cumpre-o com brio.
"Insónia"/"Insomnia" (2002), inspirado no filme homónimo do norueguês Eric Skjoldbjaerg (1997), não aspira ao que aspirava o filme anterior de Christopher Nolan no plano técnico e formal,
antes transfere a sua ambição para o plano narrativo e interpretativo, o que,
no entanto, de maneira nenhuma o situa abaixo daquele.
Um
certo tom de exotismo decorrente do facto de a acção se desenrolar no Alasca,
num ambiente de "sol da meia-noite", não é desajustado perante a
complexidade da trama urdida entre dois detectives, Will Dormer/Al Pacino e Hap Eckhart/Martin Donovan,
enviados de Los Angeles para investigar o homicídio de uma jovem de 17 anos.
Dir-se-ia estarmos perante aquilo que Hitchcock denominava um
"whodonit", isto é, um filme em que o que interessa é descobrir a
identidade do autor do crime, não se dera o caso de essa ser uma questão
resolvida a meio do filme e passar a ser a morte do segundo dos mencionados
detectives, não esclarecida, dúbia não obstante nos ser mostrada, a rivalizar
com o outro crime, ou com a captura do respectivo autor, em importância.
Perante
a evolução dos acontecimentos e o comportamento ambíguo de Dormer, o
detective sobrevivente, somos irresistivelmente remetidos para outro cineasta,
outro actor e outro filme, a saber "A Sede do Mal"/"Touch of
Evil", de e com Orson Welles, em que a personagem que ele interpretava,
Hank Quinlan, tripudiava a lei e fabricava provas à medida dos seus interesse,
como aqui acontece com Dormer, que está sob investigação interna da própria
polícia. E então, sem podermos esquecer a hábil construção dramática e fílmica
do cineasta, ganha todo o relevo o trabalho de Al Pacino, na pele de uma
personagem à altura do seu enorme talento. Se
o filme se baseia em hábeis e ágeis elipses, não evita, porém, os diálogos
dramáticos e os passos solitários de Dormer na prossecussão dos seus
inconfessáveis fins.
É
verdade que a réplica de Robin Williams como Walter Finch, num registo muito
diferente daquele, mais ligeiro, a que nos habituou, e o desempenho sóbrio,
expressivo e seguro de Hilary Swank como Ellie Burr proporcionam, juntamente
com o próprio desenrolar dos acontecimentos a que assistimos, um quadro
propício ao trabalho de Pacino, mas seria necessário um actor com a estatura e a
estrutura física dele, capaz de fazer do rosto uma máscara inexpressiva sulcada
de sentidos, do corpo o suporte de um ser complexo e atribulado, titubeante mas
sempre senhor da situação, pelo menos na aparência, para nos transmitir a
multiplicidade de sentidos contraditórios que percorrem Dormer, o detective sob
suspeita e que, além do mais ou por isso mesmo, não consegue dormir devido à
presença insistente da luz. Esta multiplicidade e complexidade da personagem, a
que apenas o assassino, primeiro, a agente Ellie Burr, depois, têm acesso,
explode na magnífica sequência em que o detective procura impedir que a luz
continue a entrar no seu quarto e acaba por confessar à dona do hotel a causa
dos seus tormentos, sequência que, aliás, se conclui sobre uma elipse
extremamente apropriada e sugestiva.
Poderemos
suspeitar de que Christophar Nolan teve demasiado presente o filme citado de
Orson Welles, datado de 1958 (1), mas o certo é que, se isso aconteceu, resulta em favor deste
"Insónia", na medida em que procura evitar a mera repetição do
esquema narrativo do filme anterior, o que se pode dizer que consegue não
obstante as semelhanças não escamoteadas: a conversa gravada, o final de
destruição mútua e até a alusão a uma personagem equivalente à de Tana/Marlène
Dietrich.
Mais
do que um filme simpático e bem feito, com a recorrência de "flashes" do
passado que não comprometem e com a boa recriação da vida na pequena cidade,
"Insónia" vem confirmar Christopher Nolan como cineasta-revelação
(em quem os produtores executivos, George Clooney e Steven Soderbergh,
apostaram), do mesmo passo que dá a Al Pacino a oportunidade para uma nova grande interpretação, ao nível do melhor que nos tem dado, que o situa como um dos melhores, quando não mesmo o melhor actor americano da sua geração.
"Não
esqueças o teu dever", diz Dormer a Ellie antes de morrer. Para que ela perceba,
apesar de tudo, e faça o que tem a fazer, aprenda o que tem a aprender com o
caso dele.
Nota
(1) Filme mítico e excepcional, "A Sede do Mal" tem um Director's Cut estabelecido em 1998 por Jonathan Rosenbaum a partir dos apontamentos e da correspondência de Orson Welles.
Nota
(1) Filme mítico e excepcional, "A Sede do Mal" tem um Director's Cut estabelecido em 1998 por Jonathan Rosenbaum a partir dos apontamentos e da correspondência de Orson Welles.
Dezembro 2006
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