Com
uma já longa obra atrás de si, Brian De Palma é, hoje em dia, um dos cineastas
mais conceituados da geração dos "movie brats" do cinema americano, o
que não é necessariamente sinónomo de popularidade. Com efeito, se comparado
com Steven Spielberg, Martin Scorsese ou Francis Ford Coppola, embora a
qualidade dos seus melhores filmes não fique atrás da dos deles, De Palma não
goza nem do prestígio nem do sucesso comercial que aqueles, nos melhores casos,
alcançaram, embora a sua carreira não tenha sido atingida pelo fracasso comercial, como (injustamente) aconteceu com Michael Cimino, nem pela aparente impopularidade no seu próprio país que parece ter atingido (injustamente) John Carpenter, contudo um cineasta de raro fulgor criativo.
Desde
há bastante tempo que o cliché que o identificava como um "imitador"
de Alfred Hitchcock foi posto em causa, quer pela variação de tons e registos que ele
soube introduzir nos seus filmes, quer pelo trabalho produzido em alguns dos
melhores de entre eles sobre a narrativa, a imagem (e o som) e o estatuto respectivo. O seu
mais recente trabalho, "Mulher Fatal"/"Femme Fatale" (2002), vem justamente corroborar esta ideia, na medida em que consegue
introduzir variações originais em temas hitchcockianos, de uma forma, aliás,
consistente, com a sua obra anterior, nomeadamente com "Corações de Aço"/"Casualties of War" (1989). Ao dizê-lo não quero
sugerir que a inspiração em Hitchcock esteja ausente, mas que De Palme soube
já agarrar nela como pretexto para pastiches em que assentam obras
pessoais e, nos melhores casos, com numerosos motivos de interesse.
"Mulher Fatal" é uma estimulante confirmação do que digo, quer pela introdução da personagem do fotógrafo, Nicolas Bardo/António Banderas, que permite insinuar uma reflexão sobre o estatuto da imagem semelhante à produzida em "Blow Out - Explosão"/"Blow Out" (1981) sobre o som, quer pelo carácter intrigante da narrativa, que parte de um audacioso assalto. Mas isto não é tudo. O esquema narrativo, ao decalcar o de "Corações de Aço", não se queda pela mera sugestão onírica, antes dela retira consequências ao nível da narrativa fílmica, de uma forma que remete parcialmente para "Jogos Perigosos"/"Funny Games", de Michael Haneke (1997), ao sugerir um mapeamento da narrativa como base de uma possível interactividade básica.
"Mulher Fatal" é uma estimulante confirmação do que digo, quer pela introdução da personagem do fotógrafo, Nicolas Bardo/António Banderas, que permite insinuar uma reflexão sobre o estatuto da imagem semelhante à produzida em "Blow Out - Explosão"/"Blow Out" (1981) sobre o som, quer pelo carácter intrigante da narrativa, que parte de um audacioso assalto. Mas isto não é tudo. O esquema narrativo, ao decalcar o de "Corações de Aço", não se queda pela mera sugestão onírica, antes dela retira consequências ao nível da narrativa fílmica, de uma forma que remete parcialmente para "Jogos Perigosos"/"Funny Games", de Michael Haneke (1997), ao sugerir um mapeamento da narrativa como base de uma possível interactividade básica.
Dir-se-á
que o esquema não é mais do que isso mesmo, um "esquema", e que como tal
Brian De Palma o adopta e se serve dele, que outros usos estratégicos com maior interesse poderia ter (poderia com certeza), tanto mais quanto esse
"esquema" pode surgir como "truque" quando no
passado do cinema encontrou justificações bem mais originais. Ora se poderá haver razões para o dizer, não se deve, todavia, esquecer que o dito
esquema funciona de forma estruturante em "Mulher Fatal" e se impõe
do interior à própria lógica do filme de uma forma original, pois o sonho da protagonista é um sonho do futuro - durante o qual ela não perde nunca o comando das operações e que lhe vai permitir alterar o curso dos acontecimentos depois de despertar -, além de ser consistente, como se disse,
com a obra anterior do cineasta desde "Irmãs Diabólicas"/"Sisters" (1973), pelo menos.
Se
as derivas de Brian De Palma pelas adaptações cinematográficas de séries
históricas da televisão - "Os Intocáveis"/"The
Untouchables" (1987) e "Missão Impossível"/"Mission:
Impossible" (1996) - davam conta simultaneamente da sua versatilidade e do seu
progressivo cansaço no seio da produção de Hollywood, este filme feito na
Europa e passado em França remete para o melhor da sua inspiração cinematográfica, de que é exemplo recente "Olhos de Serpente"/"Snake
Eyes" (1998), do mesmo modo que recorda outras revisitações do thriller
hitchcockiano na cidade-luz, Paris, pela via do mistério, de que o antecedente
mais interessante será "Frenético"/"Frantic", de Roman Polanski (1988). Que o
cineasta tenha escolhido a França como cenário do seu filme e um título
original em francês, embora seja uma expressão universal, com uso específico no filme negro que o cineasta aqui aborda de forma feliz, pode
significar que ele procurou as terras em que os seus filmes e o seu talento
melhor têm sido reconhecidos, estabelecendo uma espécie de cumplicidade
intelectual com aqueles que melhor o têm defendido como autor.
Aliás,
a narrativa e o filme permitem diversos graus de leitura, que a própria
presença de uma loira e de uma morena desde o início inculca, para além de
permitirem variações pertinentes sobre um leit-motiv de medo e de angústia, que
a surpresa do final do filme não anula. Progressivamente, somos
levados a desvendar o filme e a intriga, da mesma forma que gradualmente De
Palma está a impôr-se como um novo clássico ao impôr um novo paradigma
cinematográfico moderno.
Rebecca Romjin-Stamos é uma boa e convincente
surpresa no
principal papel feminino, de que o cineasta tira, aliás, o melhor proveito, como mulher que viveu
várias vezes - antes e depois do sonho, Lily e Laure durante ele. E ela passa a maior parte desse sonho a dizer a Bardo "fuck me"? Pois passa, mas é ao negá-lo e diferi-lo que o cineasta cria e sustenta o interesse dessa parte de "Mulher Fatal". Vejam o filme com atenção que depois percebem, e
ainda por cima dão o vosso tempo por bem empregue.
Dezembro 2006
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