“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 17 de março de 2012

Os destroços da vida


     Não conhecia nada de Marc Forster, realizador de origem alemã e criado na Suíça que dirigiu já "Everything Put Together" (2000) e de quem estreou a terceira longa-metragem, "Monster's Ball - Depois do Ódio"/"Monster's Ball" (2001). Ora trata-se de um filme com muito interesse na forma simples como está construído e na complexidade da problemática que trata: a pena de morte, a relação entre raças, a relação entre sexos, a relação dos mais velhos com os mais novos, a solidão.
     Hank Grotowski/Billy Bob Thornton é o chefe de uma equipa de carrascos encarregue de dar cumprimento à pena de morte, equipa de que faz parte o seu próprio filho Sonny/Heath Ledger, que não se mostra à altura da tarefa quando da execução de um condenado negro. Leticia Musgrove/Halle Berry é a mulher do condenado, que lhe faz a última visita acompanhada pelo filho de ambos. Depois da execução, Hank espanca o filho por ele ter dado mostras de fraqueza num momento fundamental. De regresso a casa, e na presença do pai de Hank, este confronta-se com Sonny, contrapondo-se o ódio do primeiro ao amor do segundo, que o leva à morte.
                                
      Por sua vez Leticia, uma vez só com o seu filho, assiste ao atropelamento deste e é Hank, que passava acidentalmente, que o transporta ao hospital. Perante a morte do filho dela, tornam-se os dois iguais nas respectivas situações de perda, perante uma figura mais velha, o pai dele, assombrado ainda pelos fantasmas do racismo, forma de intolerância e discriminação que dele Hank herdou sob outra forma. A partir daí o filme vai situar-se na aproximação física e afectiva entre Hank e Leticia, e se deve muito do seu êxito a um argumento que funciona de modo implacável (Milo Addica e Will Rokos), deve outro tanto ao talento dos actores, Billy Bob Thornton numa composição excepcional, para a qual a palavra tradicional, underacting, se revela insuficiente, Halle Berry num desempenho notável, de grande densidade e vibratilidade, que lhe valeu o Óscar da melhor actriz, e Peter Boyle como o pai decrépito mas recalcitrante de Hank, Buck Grotowski.
      De facto, não sabemos que mais admirar, se a impassibilidade de Hank, que leva a que seja conduzido para as situações mais do que seja ele a originá-las, se a explosão de revolta de Leticia que a conduz à noite de embriaguês e inebriamento sexual, superiormente interpretada e dirigida.
                                                                        
     "Monster's Ball - Depois do Ódio" é, assim, um filme extremamente feliz e bem conduzido, que acaba por centrar-se em duas solidões, a de Hank e a de Leticia, que sobrevivem à perda dos que lhes são mais próximos para, vencidos os obstáculos, se juntarem serenamente na soleira da porta de casa a contemplar o céu. Serão duas solidões que se acompanham uma à outra.
     Marc Forster sai-se muito bem deste filme que ritma com a secura que corresponde à maneira de ser do protagonista, que como que conduz a narrativa de princípio a fim. Se a sorte protege os audazes, este novo cineasta mostra merecer aquela que lhe coube ao receber o encargo de realizar este filme, do que se sai a contento, mesmo com brilhantismo, tirando o  melhor partido de todos os talentos com que lhe coube lidar. Sem miserabilismo, antes segurando muito bem o filme entre o melodrama e o drama realista, Marc Forster mostra-se possuidor de um talento próprio para o cinema que permite depositar nele confiança para o futuro, até pela sobriedade e segurança que aqui demonstra, sem concessões de nenhuma espécie. Quanto aos actores, o mínimo que se pode dizer é que vêm confirmar que são americanos alguns dos melhores actores de cinema do mundo.

Dezembro 2006

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