"Sob a Areia"/"Sous
le sable" (2001) é o primeiro filme de François Ozon a ter estreia
comercial entre nós, embora seja a quinta longa-metragem deste novo cineasta
francês. O filme revela grande inteligência e sensibilidade na forma como encena o lugar do ausente para a protagonista, Marie/Charlotte Rampling,
convincentemente e com todas as justificações humanas para a fantasia dela, e o
fantasma de Jean/Bruno Cremer, o marido dela, dado como desaparecido.
E,
no entanto, o cineasta trata a protagonista, a que a actriz confere dimensão
física e humana, como se ela fosse um ser comum numa situação comum,
e não como alguém ferido por profundo trauma decorrente de se
ver subitamente privada da companhia daquele com quem vivia há mais de 25 anos.
Ora é dessa décalage entre o normal e o fantasmal que François Ozon se
aproveita de forma admirável, quer quando acompanha Marie nos seus dias comuns,
quer quando a segue nos seus fantasmas e nas suas fantasias pessoais, quer
ainda quando a mostra em vias e em acto de substituir o marido ausente por
outro, Vincent/Jacques Nolot. Seria preciso recuar até
"Repulsa"/"Repulsion", de Roman Polanski (1965), ou "A Máscara"/"Persona", de Ingmar Bergman (1966), para depararmos no cinema com tão perfeita e convincente
recriação da identidade pessoal em função da alteridade e do lugar do outro
por uma subjectividade perturbada.
Também
autor do argumento, Ozon cria a personagem central como uma professora de
inglês casada com um francês e residente em França, o que transmite um primeiro
sintoma de deslocação, embora superado pela longa permanência em França e pela
natural adaptação aos hábitos continentais. E se o filme arranca, do ponto de
vista dramático, na praia, quando Jean vai tomar banho para nunca mais voltar,
na praia ele termina com a teimosa busca dele por Marie contra toda a evidência
que, mesmo no limite, ela se recusa a aceitar. Contudo, ela sabe, ela tem
consciência de que Jean não voltará, de que ele morreu, mas uma parte dela
permanece fechada às conclusões inequívocas retiradas das provas materiais, e
perante elas persiste na recusa, como que numa divisão interna do Eu, da
consciência.
Se
Charlotte Rampling deixa em Marie uma indelével marca pessoal, François Ozon
constrói um filme com muitos e prolongados silêncios e com um grande rigor
visual, para o que se serve de uma judiciosa escolha dos ângulos e da escala dos planos, que não cessam de acompanhar a protagonista nos seus
contraditórios movimentos exteriores e interiores. E em vez de a fechar em
casa, presa dos seus fantasmas e das suas recordações, fá-la viver uma vida
tanto mais normal quanto a não afasta do convívio com os outros, o que em vez
de aligeirar o lado mórbido de Marie o vem tornar mais claro. De facto, de uma
relação instalada e rotineira com Jean, de que nos são dados indícios
suficientes no filme, ela procura recuperar com Vincent precisamente as
rotinas, como se fossem onde mais a falta daquele se faz sentir, numa
tentativa, aliás, votada ao fracasso.
Percebe-se,
a este primeiro contacto com a obra de François Ozon, não só que estamos
perante um cineasta muito promissor, mas também que pode existir
algum fundamento na posição daqueles que defendem que, juntamente com Arnaud
Desplechin, Bruno Dumont, Jacques Audiard e outros, ele forma uma nova geração em evidência
no cinema francês desde os anos 90 do século passado, que tem chamado as
atenções sobre si pelas melhores razões e da qual muito haverá a esperar. "Sob a Areia" confirma tanto uma coisa como a outra, até pela maneira extremamente
hábil como, ao mostrar-nos o fantasma de Jean para Marie, acaba por nos pôr em
contacto com o carácter fantasmal da vida dela a partir do momento em que se vê
sozinha, facto para o qual a imagem e os sons do filme, nomeadamente a música,
não cessam de chamar a nossa atenção.
Dezembro 2006
Sem comentários:
Enviar um comentário