“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 24 de março de 2012

Uma luz nas trevas

        O dinamarquês Lars von Trier é um dos mais desconcertantes cineastas da actualidade. Tendo-se iniciado no cinema com uma imagem de rigor estético e de ausência de concessões ao gosto dominante, veio a integrar o grupo denominado Dogma 95, que permitiu a diferentes cineastas de diversas proveniências trabalhar de acordo com regras precisas, uma das quais era a possibilidade de infracção dessas mesmas regras.
      Depois de ter criado uma primeira trilogia, composta por "Element of Crime" (1984), "Epidemic" (!987) e "Europa" (1991), dirige o filme, que também foi série de televisão "O Reino"/"Riget" (1994). A partir de 1995 lança-se numa nova série de filmes que acaba por constituir uma nova trilogia: "Ondas de Paixão"/"Breaking the Waves" (1996), "Os idiotas"/"Idioterne" (1998) e o recém-estreado "Dancer in the Dark" (2000), Palma de Ouro e prémio da melhor interpretação feminina para Björk no Festival de Cannes.
          O que de uma forma encantatória o cineasta nos dá neste seu último filme é a memória do cinema musical como processo de criação de um imaginário feliz para a protagonista, Selma/Björk (uma imigrante checa que foi para os Estados Unidos com o filho Kostic/Gene Ježek), no meio das suas dificuldades, do seu sacrifício, do seu sofrimento. E fá-lo de três modos diferentes: através da assistência, por ela e por Kathy/Catherine Deneuve, à projecção de filmes musicais antigos, através da participação de ambas nos ensaios de uma peça musical inspirada em "Música no Coração"/"The Sound of Music" e sobretudo por intermédio das coreografias inventadas a partir da vida real pelo devaneio da protagonista.                    
                               
         Diga-se desde já que esta separação entre a vida real, com o seu dramatismo próprio transfigurado pelo melodrama, e o mundo dos sonhos de harmonia e felicidade, consubstanciado no musical, de Selma faz com que o filme se desenrole encantatoriamente mesmo nas sequências de maior dramatismo, encontrando sempre um outro lado através do som (os ruídos da fábrica, o bater dos sapatos, o bater da ponta dos dedos), que introduz um tema musical.
        Puxados em direcções diferentes pelas diferentes dimensões da vida da protagonista, acompanhamos os dois registos do filme sem que um venha anular o outro, sem que um venha impedir o outro, salvo, inevitavelmente, na excelente sequência final, em que a personagem de Selma, como anteriormente durante o julgamento mas de forma mais directa, recorda a Joana d'Arc de "A Paixão de Joana d'Arc"/"La Passion de Jeanne D'Arc", do também dinamarquês Carl Th. Dreyer (1928). Será, aliás, curioso sublinhar que Lars von Trier não enjeita, pelo contrário reconhece a influência do seu famoso compatriota, pelo qual demonstra o maior respeito e a maior admiração, que vai ao ponto de ter feito um notável "Medeia" (1988) a partir de argumento dele, apesar de o lado manipulatório dos seus filmes surgir como oposto à austeridade dos do seu justamente famoso antecessor.
           Há, aliás, nos filmes de von Trier, em especial na sua mais recente trilogia, alguma coisa que recorda o universo único de Dreyer, em particular no que respeita à predominância de personagens femininas. E o final de "Ondas de Paixão" não remete mesmo para o final de "A Palavra"/"Ordet" (1955)? Esta uma linha de comparação que aqui se deixa para reflexão futura.
                                                                            
        O certo, porém, é que "Dancer in the Dark" acaba por recuperar o melhor, não de um, mas de dois géneros, o musical e o melodrama, a ponto de este assumir uma importância fundamental (os problemas de saúde de Selma e do seu filho, os problemas financeiros do vizinho Bill/David Morse, que é polícia, o amor não correspondido de Jeff/Peter Stormare, o despedimento, a prisão e a posterior condenação de Selma), que leva a que os traços negros do filme se acentuem de forma pouco comum no melodrama, mesmo no melodrama clássico. Daí decorre, naturalmente, um maior efeito de contraste entre esse lado, melodramático, do filme e o seu lado musical, em que o segundo vem a assumir o papel de sonho possível, que é no fundo o papel do cinema, no meio da tragédia pessoal e familiar que envolve a protagonista.
         Formalmente, Lars von Trier está neste filme no seu melhor, com o trabalho a partir de várias câmaras, que determina uma mais cerrada definição do espaço e dos planos, e com o trabalho sobre os contrastes entre gradações de gamas de cor, processo antigo na sua obra que aqui atinge as raias da perfeição, com Robby Müller como director de fotografia. Por seu lado, a música, da autoria de Björk, as canções, do próprio von Trier e de Sjón Sigurdsson, e a coreografia de Vincent Paterson preenchem a parte musical do filme de uma forma perfeita, a ponto de se poder dizer que aqui o musical como género ressuscita efectivamente ao seu melhor nível e pelas melhores das razões. E a transição do silêncio carcerário para a fantasia musical é dos momentos supremos do filme.
         Mas não é apenas como realizador que Lars von Trier marca pontos neste filme, já que dele é também argumentista, como habitualmente acontece nos seus filmes mas desta vez a solo, e consegue construir, com decisivo apoio dos actores, personagens com consistência humana e autonomia narrativa, nomeadamente no caso das anteriormente citadas, no interior de uma narrativa melodramática muito bem urdida. Ele surge, portanto, de novo como autor completo, o que deve ser devidamente assinalado.
                                                                        
     Quanto aos princípios do Dogma 95, se a filmagem com diversas câmaras se revela um processo perfeitamente dominado pelo cineasta, por forma que vem permitir o tratamento mais concentrado do espaço, a famigerada "câmara-à-mão", processo que considero geralmente irritante, acaba por se justificar no ambiente eufórico/disfórico do filme.
      Um realizador de cinema, para mais quanto mais autor for, não tem que ser previsível, como de certa maneira era na época clássica do cinema, e hoje em dia Lars von Trier é um excelente exemplo disso mesmo, apesar da perturbante insistência no lado um tanto atrasado das protagonistas dos seus filmes, que vem de "Ondas de Paixão" e aqui é prosseguido no sentido de acentuar o lado indefeso e desprotegido de Selma, i. e., no sentido de reforço do melodrama.

Fevereiro 2001

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