“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 10 de março de 2012

Negro como a morte


       Depois de "Tesis" (1996) e de "Abre os Olhos"/"Abre los Ojos" (1997), Alejandro Amenábar tem a felicidade de juntar no mesmo filme dois grandes nomes do cinema americano, Nicole Kidman e Tom Cruise, ela como actriz, ele como produtor executivo. E o mínimo que se pode dizer de "Os Outros"/"The Others" (2001), o filme que resultou dessa conjugação de "astros", é que é uma obra poderosa e surpreendente, ao nível do melhor que o fantástico nos tem dado em tempos recentes.
       A figura de Grace/Nicole Kidman, que vive com os filhos encerrada numa mansão em que os pretende proteger da luz do sol que julga poder matá-los, enquanto espera o regresso do marido da guerra (a II Guerra Mundial), impõe-se pelo seu carácter obsessivo, presa de si mesma e dos seus fantasiados fantasmas. O espectador deixa-se enredar na bem elaborada trama narrativa em volta da qual o filme se estrutura solidamente em termos visuais e sonoros, enquanto a actriz tem uma boa oportunidade para dar mais uma vez conta dos seus dotes e do seu talento. O estilo do filme envolve-nos e embala-nos no convívio fechado das suas personagens, das quais a mãe surge como hiper-protectora e os filhos como vítimas desse excesso de afecto materno.

                                   
        Não é, pois, sem surpresa que, após uma longa exposição dos dados da narrativa, que envolve o regresso do pai das crianças, esperado com ansiedade, somos confrontados com um patamar de ficção para o qual nada anteriormente nos preparara, nem na narrativa nem na filmagem minuciosa de Alejandro Amenábar, o que aumenta naturalmente o impacto emocional do filme, embora se possa considerar que, mesmo se tratado de outra maneira, ele fosse susceptível de manter o seu cariz emotivo neste ponto.
       Assim, tal como é, "Os Outros" surge como um brilhante exercício de estilo capaz de seduzir por boas razões, as mitológicas e as humanas, e de comover sem concessões sentimentais. Tudo é, na verdade, justo neste filme: a maneira de representar, a maneira de filmar, a maneira de fotografar e iluminar, a maneira de montar. E se, no final, nos retiramos da mansão um pouco como Orson Welles se retirava da mansão de Charles Foster Kane em "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane (1941), é porque, como aí, saímos conhecedores de algo que todos, incluindo as próprias personagens, ignoram. Esse segredo, que nos assombra e assombra a mansão, é o segredo dos protagonistas e o segredo do filme, que transporta uns e o outro para uma outra e inesperada dimensão. O que parecia conspiração hitchcockiana contra Grace, agravado pelo aspecto físico, frágil e loiro, de Nicole Kidman, revela-se outra coisa, como os estranhos acontecimentos que acompanhavam os protagonistas mostram ter uma origem insuspeitada.
                                     
      Se o filme resulta, e resulta mesmo, chegando a atingir o brilhantismo, é porque o cineasta mostra de novo e decisivamente grande saber e intuição do cinema, o que leva  a que seja capaz de nos surpreender num registo, o do terror e do fantástico, em que o cinema nos habituou já a que para tudo devemos estar preparados. Ora o que Alejandro Amenábar faz é investir um género e um estilo de filmes de maneira nova e surpreendente, deixando o espectador abismado perante aquilo que, com grande mestria fílmica, lhe é revelado. E que, se explica tudo no filme, nos deixa sozinhos com o que sabemos perante o inexplicável.
      Chamem-lhe apreço pelos (e regresso aos) clássicos, chamem-lhe o que quiserem, mas vejam "Os Outros" com olhos de ver por dentro a realidade da vida e a matéria de que são feitos os sonhos, i. e., também os filmes.

Dezembro 2006

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