Depois de "Tesis" (1996) e de
"Abre os Olhos"/"Abre los Ojos" (1997), Alejandro Amenábar tem a
felicidade de juntar no mesmo filme dois grandes nomes do cinema americano,
Nicole Kidman e Tom Cruise, ela como actriz, ele como produtor executivo. E o
mínimo que se pode dizer de "Os Outros"/"The Others" (2001), o filme que resultou dessa conjugação de "astros", é que é uma
obra poderosa e surpreendente, ao nível do melhor que o fantástico nos tem dado
em tempos recentes.
A figura de Grace/Nicole Kidman,
que vive com os filhos encerrada numa mansão em que os pretende proteger da luz
do sol que julga poder matá-los, enquanto espera o regresso do marido da guerra
(a II Guerra Mundial), impõe-se pelo seu carácter obsessivo, presa de si mesma e
dos seus fantasiados fantasmas. O espectador deixa-se enredar na bem elaborada
trama narrativa em volta da qual o filme se estrutura solidamente em termos
visuais e sonoros, enquanto a actriz tem uma boa oportunidade para dar mais uma vez conta dos seus dotes e do seu talento. O estilo do filme
envolve-nos e embala-nos no convívio fechado das suas personagens, das quais a
mãe surge como hiper-protectora e os filhos como vítimas desse excesso de afecto materno.
Não
é, pois, sem surpresa que, após uma longa exposição dos dados da narrativa, que
envolve o regresso do pai das crianças, esperado com ansiedade, somos
confrontados com um patamar de ficção para o qual nada anteriormente nos
preparara, nem na narrativa nem na filmagem minuciosa de Alejandro Amenábar,
o que aumenta naturalmente o impacto emocional do filme, embora se possa considerar que, mesmo se tratado de outra maneira, ele
fosse susceptível de manter o seu cariz
emotivo neste ponto.
Assim,
tal como é, "Os Outros" surge como um brilhante exercício de estilo
capaz de seduzir por boas razões, as mitológicas e as humanas, e de comover sem
concessões sentimentais. Tudo é, na verdade, justo neste filme: a maneira de
representar, a maneira de filmar, a maneira de fotografar e iluminar, a maneira
de montar. E se, no final, nos retiramos da mansão um pouco como Orson Welles se
retirava da mansão de Charles Foster Kane em "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane (1941), é porque, como aí, saímos conhecedores de algo que
todos, incluindo as próprias personagens, ignoram. Esse segredo, que nos
assombra e assombra a mansão, é o segredo dos protagonistas e o segredo do
filme, que transporta uns e o outro para uma outra e inesperada dimensão. O que
parecia conspiração hitchcockiana contra Grace, agravado pelo aspecto físico,
frágil e loiro, de Nicole Kidman, revela-se outra coisa, como os estranhos
acontecimentos que acompanhavam os protagonistas mostram ter uma origem
insuspeitada.
Se
o filme resulta, e resulta mesmo, chegando a atingir o brilhantismo, é porque o
cineasta mostra de novo e decisivamente grande saber e intuição do cinema, o
que leva a que seja capaz de nos
surpreender num registo, o do terror e do fantástico, em que o cinema nos
habituou já a que para tudo devemos estar preparados. Ora o que Alejandro
Amenábar faz é investir um género e um estilo de filmes de maneira nova e
surpreendente, deixando o espectador abismado perante aquilo que, com grande
mestria fílmica, lhe é revelado. E que, se explica tudo no filme, nos deixa
sozinhos com o que sabemos perante o inexplicável.
Chamem-lhe
apreço pelos (e regresso aos) clássicos, chamem-lhe o que quiserem, mas vejam
"Os Outros" com olhos de ver por dentro a realidade da vida e a
matéria de que são feitos os sonhos, i. e., também os filmes.
Dezembro 2006
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