Com a estreia de "Vigaristas
de Bairro"/"Small Time Crooks" (2000) e de "A Maldição do
Escorpião de Jade"/"The Curse of the Jade Scorpion" (2001), pudemos pôr em dia o nosso conhecimento dos
filmes de Woody Allen. E os dois filmes emparelham muito bem na obra dele, pois
ambos tratam de golpes de génio, em que o próprio cineasta surge também
envolvido, como é costume, na qualidade de actor.
"Vigaristas
de Bairro" centra-se num assalto de grande vulto preparado a partir de uma
pastelaria de bairro em
Nova Iorque. A primeira parte gira em volta desse golpe
infrutífero, em que estão envolvidos Ray Winkler/Woody Allen, um
ex-presidiário, e Frenchy/Tracey Ullman, mulher daquele, que ele tem de
convencer a dar cobertura ao assalto que prepara com uns amigos, Denny/Michael
Rapaport, Tommy/Tony Darrow e Ben/Jon Lovitz. A intromissão de uma não muito
esperta May/Elaine May, em vez de simplificar as coisas vem complicá-las, não só
aí mas também depois de fracassado o golpe, quando acaba por ser a pastelaria a
transformar-se num negócio lucrativo.
Na primeira parte o filme goza de um humor que advém das características
típicas de cada uma das personagens, que levam a que cada um por si e como parte
de um todo se afirme, e a segunda parte mostra-nos os frustrados assaltantes como
novos-ricos, com fortuna obtida a partir do mais despretensioso e lícito dos
negócios. Então o filme envereda pela exploração do sucesso das personagens,
sucesso obviamente mediatizado, pelo caminho da separação do casal Ray/Frenchy
à medida que se envolve nos meandros da alta sociedade, em que ambos acabam por
seguir rumos diferentes, ela seduzida pelo seu pigmaleão, David/Hugh Grant, ele
deixado a braços com a inocente May. As peripécias multiplicam-se e passam por
um novo assalto, tão audacioso como o primeiro, tão burlesco e tão fracassado
como ele, e o filme acaba em tom moralista, não de um qualquer moralismo mas de
um moralismo prosaico e quotidiano, à Woody Allen.
Perpassa
por este "Vigaristas de Bairro" um tom cáustico mas sereno, como não
víamos no autor desde "Balas Sobre a Broadway"/"Bullets Over
Broadway" (1994), e, mais que a inspiração do filme negro americano, a da
comédia de costumes tal como praticada superiormente por Ernst Lubitsch. Temos,
pois, neste filme um Woody Allen ao nível do seu melhor, tanto na parábola do
filme como nos pequenos pormenores do enredo e nos momentos fortes de
comicidade, o que tudo flui naturalmente, sem forçar o tom nem acentuar os mecanismos que fazem girar a narrativa em termos visuais e
auditivos.
Em "A Maldição do Escorpião de Jade" é já a memória do filme negro
que se impõe, desde logo pela localização temporal da narrativa em 1940. C. W. Briggs/Woody
Allen é um investigador que trabalha para uma companhia de seguros de Nova
Iorque e que tem de enfrentar simultaneamente Betty Ann Fitzgerald/Helen Hunt,
a especialista contratada para modernizar a empresa, para quem ele é um
dinossauro, e uma vaga de misteriosos assaltos a ricas mansões.
Se
"O Grande Conquistador"/"Play It Again, Sam" (1972), dirigido por Herbert Ross a partir da
peça do próprio Allen, era assombrado pelo "personagem" de Humphrey
Bogart, agora essa inspiração surge em filigrana, como que filtrada pelo tempo
e a memória, puxada ela também para o lado da comédia americana, nomeadamente
através dos diálogos. Se Betty Ann se vê envolvida com o patrão, Chris
Magruder/Dan Ayckroyd, C. W. é levado a confrontar-se, durante a investigação,
com a jovem e atraente Laura Kensington/Charlize Theron, e desses encontros,
que se tornam recontros, decorrem situações e diálogos que só têm paralelo na
relação entre Betty Ann e C. W. Briggs, ou na deste com Jill/Elizabeth Berkley.
Como
é bom de ver, os misteriosos assaltos contavam com cumplicidades insuspeitadas
- o investigador conclui imediatamente "It's an inside job, no
question" - e o certo é que a própria evocação da época faz passar o
método utilizado com perfeita naturalidade
junto dos espectadores, apesar de todo o seu artifício. No final, é também com naturalidade que o feitiço se volta
contra o feiticeiro, primeiro, contra a feiticeira, depois, e aí encontramos de
novo a marca do cineasta no seu melhor, com o sereno angelismo dos inocentes
que fazem o possível por o não ser.
Comédia
policial de época, "A Maldição do Escorpião de Jade" constitui um bom
achado na obra de Woody Allen, de que permite completar o quadro multifacetado
que traça de Nova Iorque, até pelo paralelo que permite estabelecer com o
anterior "Através da Noite"/"Sweet and Lowdown" (1999).
Com o seu recurso, múltiplo e exuberante, à palavra e com a insistente criação de contrastes entre as personagens, o cineasta prossegue uma obra que é já longa em grande estilo e a grande nível, onde todos nos habituámos a situá-lo e a reconhecê-lo. Uma obra em que a multiplicidade de contrastes entre diferentes personagens estabelece, filme a filme, uma teia de relações diversificadas, com recorrências mas sempre renovadas.
Ao acompanhar o devir ela mesma e outra da obra de Woody Allen podemos permanentemente saber onde ele está, onde cada um de nós está e onde está o próprio cinema, cientes de que ele é um dos grandes cineastas contemporâneos, sempre autor completo dos seus próprios filmes, herdeiro e sucessor de nomes maiores da história do cinema, como John Cassavetes e Ingmar Bergman.
Ao acompanhar o devir ela mesma e outra da obra de Woody Allen podemos permanentemente saber onde ele está, onde cada um de nós está e onde está o próprio cinema, cientes de que ele é um dos grandes cineastas contemporâneos, sempre autor completo dos seus próprios filmes, herdeiro e sucessor de nomes maiores da história do cinema, como John Cassavetes e Ingmar Bergman.
Dezembro 2006
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