Um dos nomes maiores do cinema
europeu actual, Nanni Moretti, que já nos tinha dado filmes muito bons, como
"Sonhos de Ouro"/"Sogni d'oro" (1981), "Palombella
Rossa" (1989), "Querido Diário"/"Caro diario" (1994), em que percorreu os caminhos de Roberto Rossellini, e
"Abril"/"Aprile" (1998), viu estreado entre nós o seu
mais recente filme, "O Quarto do Filho"/"La Stanza del figlio", (2001), justamente premiado em Cannes.
A
tranquilidade latina de Nanni Moretti, que nunca perde de vista um pendor para a exuberância e a
auto-ironia, tem-se dado bem com os dados excessivos de uma
situação trágica, ou que dela se aproxima (vejam-se, por exemplo, os seus dois
filmes imediatamente anteriores estreados entre nós), do mesmo passo que o tem afirmado como o
primeiro e o melhor continuador da tradição cinematográfica italiana do
pós-guerra. Com "O Quarto do Filho" ele instala-se no coração do
drama familiar, com o casal composto por Giovanni/Nanni Moretti e Paola/Laura
Morante, que vive uma vida burguesa e tranquila com os seus dois filhos e vê um deles, Andrea/Giuseppe Sanfelice, morrer num acidente.
O
caminho fácil para tratar este tema era o de nos dar todo o excesso de dor da
parte dos familiares sobreviventes, acentuado pela sua origem latina. Não é
esse, porém, o caminho que o cineasta escolhe.
Num
minucioso trabalho de construção visual e narrativa, Moretti, que tinha
começado por nos dar em meia dúzia de traços polvilhados de humor geracional o
ambiente familiar, dedica-se a encenar o lugar vazio, o lugar deixado vazio
pela morte de Andrea. Para isso socorre-se da "mise-en-scène" e da
presença da presumível namorada do desaparecido, bem como de uma viagem que
os pais e a irmã dele empreendem em conjunto com ela para a levar onde ela pretende ir, e
que serve como luto comum e preparação para a nova situação: a ausência de
Andrea. Mas como não é nem um principiante nem um diletante, o cineasta utiliza
com grande felicidade a expressividade física e em especial fisionómica dos
seus actores, nomeadamente de Laura Morante e dele próprio, para nos transmitir
todo o sentimento de desolação e de perda que inevitavelmente invade a família, e utiliza esses elementos como parte da "mise en scène" na construção, com o espectador e para o espectador, do vazio como espaço físico mas também, e até fundamentalmente, como espaço interior. Para o conseguirem as personagens movimentam-se, viajam, para poderem depois, sem esquecer mas mantendo o quarto vazio como realidade viva na memória (um espaço mobilado de recordações), prosseguir todos em frente, cada um no seu próprio caminho.
Para
quem, dentro da crítica cinematográfica, começou por ver em Nanni Moretti um
sucedâneo europeu e italiano de Woody Allen, é mais que tempo de reconsiderar
essa impressão inicial e de começar a enunciar o "caso Moretti" como um dos mais singulares e importantes do cinema contemporâneo. Se é certo que há uma
certa melancolia que ele partilha em certos momentos com alguns filmes de Woody
Allen, há também uma pessoal e forte relação entre Moretti e o seu país, a Itália,
que o leva a procurar as suas origens pessoais e as da
cinematografia a que pertence. Ora essa busca das origens, que significa não
renegar nem esquecer o melhor do cinema italiano do pós-guerra, tem levado a que
ele trace um quadro rigoroso e compadecido da sociedade italiana actual, sem
nunca perder de vista uma perspectiva crítica.
Sendo
ele próprio actor, Nanni Moretti tem também uma sensibilidade especial para o
trabalho dos actores que chama para trabalharem com ele, o que neste "O Quarto do Filho" se torna particularmente evidente e abrange naturalmente
os mais novos, Jasmine Trinca e Giuseppe Sanfelici, que interpretam os filhos.
Laura Morante, actriz notável que não víamos há alguns anos, brinda-nos aqui
com o melhor do seu talento, tratando Paola com o mesmo pudor e a mesma
contenção com que o próprio Moretti trata Giovanni. A morte de Andrea,
acidental e súbita, torna-se, assim, o motivo da encenação daquele
que se torna ausente por aqueles que permanecem, que nos seus corpos,
nos seus rostos, nos seus movimentos transportam a dor da perda - o que
significa, em termos fílmicos, que dão vida, exterioridade, visibilidade a essa
mesma dor, a essa mesma perda e ao espaço vazio que ela implica.
Ao encenar com os vivos o lugar, o espaço daquele que desapareceu, com
este filme Nanni Moretti reafirma, tranquilamente e com brio, a sua posição cimeira no
contexto do actual cinema europeu, uma posição feita de sabedoria, de
sensibilidade e de rigor, sem qualquer espécie de concessões, nem mesmo aquelas
que poderiam passar por compreensíveis no quadro do cinema italiano.
Dezembro 2006
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