Ninguém melhor do que Steven
Spielberg poderia concretizar um projecto de Stanley Kubrick, que o escolheu
como aquele que melhor o poderia pôr em filme.
"A.I.
- Inteligência Artificial"/"A.I. - Artificial Intelligence" (2001) é um excelente filme de Steven Spielberg, que herdou o projecto do seu
autor inicial e acabou por dele fazer obra sua, pessoal e conseguida. Aqui, o
falso problema era saber se o filme era mais de um do que do outro, o verdadeiro
problema saber se o filme estaria à altura das expectativas justamente criadas.
Ora
Spielberg investe o projecto com o melhor da sua inventiva e criatividade,
rodeando-se dos melhores colaboradores em tudo o que diz respeito à
originalidade e ao impacto do filme e assumindo, pela segunda vez na sua obra, a co-autoria do argumento, baseado no romance de Brian Aldiss. "Supertoys Last All Summer Long". Quem liga o seu nome a filmes carregados
de efeitos especiais destinados a um público-alvo muito determinado, de que os
mais recentes exemplos são os dois primeiros "Parque
Jurássico"/"Jurassic Park" (1993 e 1997), terá ficado surpreendido com a
capacidade que ele aqui demonstra de se elevar ao melhor nível do filme de
ficção científica, que, aliás, já abordara de forma feliz em
"Encontros Imediatos do Terceiro Grau"/"Close Encounters of the Third Kind" (1977), e em "E.T. - O Extra-Terrestre"/"E.T.: The Extra-Terrestrial" (1982). De
facto, neste "A.I. - Inteligência Artificial" o cineasta não só
demonstra a sua enorme criatividade a todos os níveis, com destaque para a cenografia, futurista e deliberadamente kitch, e o pleno domínio dos
efeitos especiais, audaciosos e surpreendentes - que coloca ao serviço do filme, em vez de deles fazer um uso
experimental e lúdico, como terá acontecido nos dois citados episódios de
"Parque Jurássico" -, como se mostra à altura de um projecto com a
assinatura inicial de um nome mítico da história do cinema.
O projecto de Stanley Kubrick era tanto mais ambicioso quanto, pela sua temática, podia envolver um confronto com o seu mítico "2001 - Odisseia no Espaço"/"2001: A Space Odyssey" (1968), o filme que lançou a ficção científica como género eminentemente moderno, mas não será exagerado considerar que este filme de Spielberg rivaliza com o estatuto mítico do seu famoso antecessor, quer temática quer esteticamente.
Ao
partir das fronteiras entre o humano e o maquínico, entre o natural e o
artificial, Steven Spielberg dá uns passos em frente em relação ao filme mítico
de Kubrick, por forma que lhe permite relançar o imaginário da ficção
científica e a estética respectiva no cinema no ano mítico (também por causa do filme)
de 2001. Enquanto, depois de termos descoberto os seus problemas íntimos,
acompanhamos o percurso do pequeno robô David, interpretado com brilhantismo por Haley
Joel Osment (o mesmo de "O Sexto Sentido"/"The Sixth Sense", o filme que em 1999 revelou M. Night Shyamalan), somos confrontados com os limites e os fantasmas que
demarcam esse mesmo percurso, que o vêm tornar simultaneamente aterrador e
fascinante (a Flesh Fair, o andróide Gigolo Joe/Jude Law, Rouge City, Nova Iorque submersa). Ora
é nesse limiar entre o terror e a atracção que o cineasta esteia o seu filme de
uma forma feliz e convincente, ao mesmo tempo que nos transporta para um mundo
pós-humano (o robô destina-se a substituir o filho de um casal humano), sem com
isso nos retirar os efeitos de projecção e identificação típicos do cinema, antes conferindo-lhes nuances e perplexidades (o pequeno robô é abandonado depois da recuperação daquele que visava substituir).
Anote-se,
além do mais, que de novo Steven Spielberg volta a adoptar como personagem
central uma criança, que para mais é um robô, o que vem de novo recordar o seu normalmente bom trabalho
com elas, como sucedia já nos filmes mencionados e em "O Império do
Sol"/"Empire of the Sun" (1987). Mas sublinhe-se de novo a
qualidade dos efeitos especiais e a mestria da sua integração no filme, sem que
pelo facto este a eles se limite, uma vez que o interesse de "A.I.
- Inteligência Artificial" se prende
fundamentalmente com o desenvolvimento da narrativa em si mesma, com o percurso do seu jovem protagonista em busca de quem o possa tornar humano, que acaba por
atingir uma dimensão simbólica, duplamente simbólica mesmo, à semelhança do que acontecia com o filme de
Kubrick mas de outro modo e por outros processos.
"A.I.
- Inteligência Artificial", embora tenha como personagem central uma
criança, é, assim e finalmente, um filme para adultos, que nos coloca perante os limites do
humano e um futuro sem regresso com que o filme termina. Acontece que esta
dimensão crepuscular da própria humanidade que o cineasta imprime ao filme excede deliberadamente a
ficção-científica de pacotilha com que tantas vezes o género nos tem brindado,
do mesmo modo que excede as perspectivas épicas e mágicas que têm sido, e
continuam a ser de uso noutros casos, mesmo nos anteriores filmes de ficção científica do próprio Steven Spielberg, com a sua fascinante carga infantil. Se isso acontece, é porque vemos
transferida para o pequeno robô, ser complexo mas tornado simpático, e para outros que ele não deixa de encontrar,
a nossa própria natureza humana de uma maneira adulta e superior, o que torna verdadeiramente abissal no tempo o final do filme.
Pode,
assim, Stanley Kubrick descansar em paz, uma vez que o seu projecto foi muito
bem concretizado neste excelente filme em que ele continua presente como fonte
inspiradora, deixando intacta a originalidade e o carácter seminal do seu filme de 1968, assim como pode Steven Spielberg regressar, se quiser, ao registo lúdico em
que tão bons resultados tem conseguido também, nomeadamente ao prometido quarto
episódio da saga de Indiana Jones (que no entanto não aparece entre os seus
projectos imediatos).
Não devo terminar sem uma referência à excepcional série televisiva "Irmãos de Armas"/"Band of Brothers" (2001), produzida por Spielberg e Tom Hanks no prosseguimento da inspiração de "O Resgate do Soldado Ryan"/"Saving Private Ryan" (1998), série extremamente bem concebida e bem concretizada, que só encontrará precedente cinematográfico em "O Sargento da Força Um"/"The Big Red One", de Sam Fuller (1980) - filme sobre cuja montagem final, aliás, o cineasta nunca pôde ter a última palavra.
Não devo terminar sem uma referência à excepcional série televisiva "Irmãos de Armas"/"Band of Brothers" (2001), produzida por Spielberg e Tom Hanks no prosseguimento da inspiração de "O Resgate do Soldado Ryan"/"Saving Private Ryan" (1998), série extremamente bem concebida e bem concretizada, que só encontrará precedente cinematográfico em "O Sargento da Força Um"/"The Big Red One", de Sam Fuller (1980) - filme sobre cuja montagem final, aliás, o cineasta nunca pôde ter a última palavra.
Dezembro 2006
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