“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 10 de março de 2012

Um filme em cheio


       À sua terceira longa-metragem, "A Promessa"/"The Pledge" (2001), o conhecido actor Sean Penn dirige um excelente e original filme, para o qual se baseia na obra de Friedrich Dürrenmatt. Sem poder estabelecer um confronto pertinente com os filmes anteriores por ele dirigidos, "União de Sangue"/"The Indian Runner" (1991) e "Acerto Final"/"The Crossing Guard" (1995), uma vez que só conheço o segundo, posso no entanto dizer desde já que este "A Promessa" é uma boa surpresa pela forma como o actor enquanto realizador agarra na estrutura narrativa e procede à sua transposição pessoal em termos fílmicos.
      Jerry Black, o detective apanhado pela situação de reforma que Jack Nicholson interpreta com a sua imensa sabedoria e a sua espantosa intuição do cinema, assume como última incumbência, para lá da sua situação de activo, a de descobrir o assassino de crianças que espalha o terror a partir da descoberta do cadáver de uma primeira menina. O trabalho de Jack Nicholson é notável ao transmitir-nos a dualidade da personagem, dividida entre toda uma vida profissional activa e uma situação de inactividade que a espera, não obstante a qual se compromete a descobrir o assassino. Mas se esse lado é muito evidente no filme, em si mesmo este deve-se ao talento de Sean Penn como realizador, que é responsável por um trabalho fílmico rigoroso e denso, que se baseia no tratamento dos elementos visuais do filme e na caracterização de todas as personagens de forma precisa e muito acertada, para o que conta com excelentes actores no seu melhor: para além de Jack Nicholson, Benício Del Toro numa composição notável, Aaron Eckart, Helen Mirren e, em especial, Vanessa Redgrave, Sam Shepard e Colin Right Penn, esta no papel de Lori, com quem Jerry se refugia na montanha juntamente com a filha dela, Chrissy/Pauline Roberts, além de Harry Dean Stanton e Mickey Rourke.
                                                    
      O avanço gradual da narrativa está muito bem dado em termos fílmicos, o que faz com que "A Promessa" vá tomando conta, a pouco e pouco mas irresistivelmente, dos espectadores, presos que ficam pela repelência dos crimes que estão em causa e pelo papel positivo que relativamente a eles Jerry Black se propõe desempenhar, se compromete a desempenhar. Para a criação do ambiente fílmico contribuem também, e decisivamente, a fotografia, sempre notável, de Chris Menges e a música de Hans Zimmer, bem como, e inevitavelmente, os argumentistas Jerzy Kromolowski e Mary Olson-Kromolowski.
    À medida que se desenvolve a narrativa e se aprofunda a personagem do detective, nomeadamente através da sua relação com Lori, vão aumentando os elementos de interesse mas também os riscos que Jerry Black se dispõe a correr. E é então que o clima dramático se adensa, que cresce a angústia do espectador, preparado para um final espectacular, à maneira daquilo a que está habituado no cinema de Hollywood. Ora acontece que Sean Penn corta as pontes com a narrativa tradicional do filme sobre um "serial killer", que este seu filme aparenta ser, para se centrar na complexidade sem saída do investigador, que nos deixa estarrecidos no plongé final.
                                
      Jogando na maior ambiguidade, tanto maior quanto a pureza de intenções do detective se apresenta sem sombra de dúvidas até pelo que nos é mostrado da sua evolução pessoal, o que é facilitado pela própria novela adoptada como ponto de partida, "A Promessa" de Sean Penn surge como uma agradável e estimulante surpresa no meio do mundo de clichés em que tantas vezes o cinema americano se move, tanto mais admirável quanto revela pleno domínio dos meios cinematográficos e dos mecanismos da relação que se estabelece entre o filme e os espectadores. Original e seguro, Sean Penn mostra com este filme que pode perfeitamente ombrear, como cineasta, com a sua qualidade de um dos melhores actores americanos da actualidade.

Dezembro 2006

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