“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A condição portuguesa

      Há ocasiões em que o cansaço das imagens desaparece, e é quando alguma coisa de primordial, de primitivo as atravessa para se nos cravar nos sentidos e na memória. É isso que acontece com a segunda longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, "Frágil Como o Mundo" (2002), filme que se desenrola entre personagens míticas que nos trabalham, nos habitam e em que nós, mais tarde ou mais cedo, nos transformamos. Eu explico-me.
      "Frágil Como o Mundo" impõe-se quase insensivelmente como uma melopeia sonora, aliás belíssima, composta por palavras de Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís, Luís de Camões, nomeadamente. Só por si, essa bela melopeia transforma-se em melodia fundamental e fundadora de uma condição humana, tal como ela pode ser enunciada em português. Mas, embora eu suspeite de que o filme quase delas pudesse prescindir, as imagens surpreendem vivamente, elas também. Na verdade, a câmara de mestre Acácio de Almeida cria um mundo assombroso de imagens, com um tratamento cortante do preto e branco que o faz parecer único, concebido especialmente para este filme. Umas vezes invadida por indecisos cinzentos, outras vezes puxando o contraste até arestas de aço, a imagem que nos surge aqui é a de um mundo fantástico, de um conto de fadas que se quer reflexo fiel dessa condição humana enunciada pelas palavras em português. Reflexo condensado e deslocado, como aquele que o sonho em nós desperta, à semelhança do que faz o filme, como Christian Metz mostrou/demonstrou num texto célebre.
       Fantomáticas, as personagens habitam aos pares essas imagens, como que esculpidas no tempo, à semelhança do que acontece com as palavras: o rapaz e a rapariga, os pais dela, o avô dela e a avó dele. A voz do narrador encarrega-se do resto.
                                           
        O ar de assombramento que habita o par mais jovem como que resume uma condição juvenil tal como ela pode ser equacionada pelo imaginário de cada um deles, ou de quaisquer outros da mesma idade. Os pais dela como que cristalizam uma idade madura, em que a juventude acabou e a velhice ainda não chegou. Os avós falam e movem-se como sombras do passado, detentores de uma enorme sabedoria mas também sabedores da sua (e dos outros) imensa fragilidade.
      Mas a imaginação criadora de Rita Azevedo Gomes não se fica por aqui, já que ela se socorre, na banda imagem, além do preto e branco também da cor, nomeada mas não exclusivamente para a evocação do passado pela protagonista (um pouco como na história contada por Monica Vitti em "O Deserto Vermelho"/"Il Deserto Rosso", de Michelangelo Antonioni, 1964). Por seu lado, a banda sonora é também esplendidamente preenchida do ponto de vista da música, o que transforma este "Frágil Como o Mundo" numa espécie de portentosa cantata, cujas diversas partes a voz do narrador vem ligar. E como nós percebemos a universalidade da condição humana tal como enunciada em português ao ouvirmos as últimas palavras da avó, no fim do filme, na voz improvável, prodigiosa de Manuela de Freitas!
       E tudo isto sem que em algum momento esteja em causa que a fragilidade de que fala o título do filme é em primeiro lugar a dos mais novos, especialmente dela, ou sem que em algum momento duvidemos de que essa fragilidade deles, dela, é também a das outras personagens e a nossa.
      Com actores perfeitamente singulares nas suas interpretações, mesmo no caso dos mais experimentados nas coisas do cinema, este mais recente filme de Rita Azevedo Gomes surge como um raio de luz de uma estranha mas fascinante luminosidade no actual panorama do cinema português porque nos faz acreditar que o cinema é, passados mais de cem anos sobre a invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumière, uma arte a reinventar incessantemente para que se cumpra, e não a rotina das receitas, antigas ou modernas, nomeadamente do ponto de vista narrativo, que é aquele que mais faz salivar a maioria dos espectadores, que não suspeitam sequer que filmes como este possam existir e dizer-nos coisas fundamentais.


Dezembro 2006

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