Há ocasiões em que o cansaço das
imagens desaparece, e é quando alguma coisa de primordial, de primitivo as
atravessa para se nos cravar nos sentidos e na memória. É isso que acontece com
a segunda longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, "Frágil Como o Mundo"
(2002), filme que se desenrola entre personagens míticas que nos trabalham, nos
habitam e em que nós, mais tarde ou mais cedo, nos transformamos. Eu
explico-me.
"Frágil Como o Mundo" impõe-se quase insensivelmente como uma melopeia sonora,
aliás belíssima, composta por palavras de Sophia de Mello Breyner, Agustina
Bessa-Luís, Luís de Camões, nomeadamente. Só por si, essa bela melopeia
transforma-se em melodia fundamental e fundadora de uma condição humana, tal
como ela pode ser enunciada em português. Mas, embora eu suspeite de que o filme
quase delas pudesse prescindir, as imagens surpreendem vivamente, elas também.
Na verdade, a câmara de mestre Acácio de Almeida cria um mundo assombroso de
imagens, com um tratamento cortante do preto e branco que o faz parecer único,
concebido especialmente para este filme. Umas vezes invadida por indecisos
cinzentos, outras vezes puxando o contraste até arestas de aço, a imagem que
nos surge aqui é a de um mundo fantástico, de um conto de fadas que se quer
reflexo fiel dessa condição humana enunciada pelas palavras em português. Reflexo
condensado e deslocado, como aquele que o sonho em nós desperta, à semelhança
do que faz o filme, como Christian Metz mostrou/demonstrou num texto célebre.
Fantomáticas,
as personagens habitam aos pares essas imagens, como que esculpidas no tempo, à
semelhança do que acontece com as palavras: o rapaz e a rapariga, os pais dela,
o avô dela e a avó dele. A voz do narrador encarrega-se do resto.
O
ar de assombramento que habita o par mais jovem como que resume uma condição
juvenil tal como ela pode ser equacionada pelo imaginário de cada um deles, ou
de quaisquer outros da mesma idade. Os pais dela como que cristalizam uma idade
madura, em que a juventude acabou e a velhice ainda não chegou. Os avós falam e
movem-se como sombras do passado, detentores de uma enorme sabedoria mas também
sabedores da sua (e dos outros) imensa fragilidade.
Mas
a imaginação criadora de Rita Azevedo Gomes não se fica por aqui, já que ela se
socorre, na banda imagem, além do preto e branco também da cor, nomeada mas não
exclusivamente para a evocação do passado pela protagonista (um pouco como na história contada por Monica Vitti em "O Deserto Vermelho"/"Il Deserto Rosso", de Michelangelo
Antonioni, 1964). Por seu lado, a banda sonora é também esplendidamente preenchida do
ponto de vista da música, o que transforma este "Frágil Como o Mundo"
numa espécie de portentosa cantata, cujas diversas partes a voz do narrador vem
ligar. E como nós percebemos a universalidade da condição humana tal como
enunciada em português ao ouvirmos as últimas palavras da avó, no fim do filme,
na voz improvável, prodigiosa de Manuela de Freitas!
E
tudo isto sem que em algum momento esteja em causa que a fragilidade de que
fala o título do filme é em primeiro lugar a dos mais novos, especialmente
dela, ou sem que em algum momento duvidemos de que essa fragilidade deles, dela,
é também a das outras personagens e a nossa.
Com
actores perfeitamente singulares nas suas interpretações, mesmo no caso dos
mais experimentados nas coisas do cinema, este mais recente filme de Rita
Azevedo Gomes surge como um raio de luz de uma estranha mas fascinante
luminosidade no actual panorama do cinema português porque nos faz acreditar que
o cinema é, passados mais de cem anos sobre a invenção do cinematógrafo pelos
irmãos Lumière, uma arte a reinventar incessantemente para que se cumpra, e não
a rotina das receitas, antigas ou modernas, nomeadamente do ponto de vista
narrativo, que é aquele que mais faz salivar a maioria dos espectadores, que não suspeitam
sequer que filmes como este possam existir e dizer-nos coisas fundamentais.
Dezembro 2006
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