“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Negra África Negra

           O brasileiro Fernando Meirelles chamou a atenção sobre si com “Cidade de Deus” (2002), filme notável, duro e áspero, sobre a “favela” brasileira, levando-nos, com Walter Salles, a acreditar de novo no cinema brasileiro e a dele nos sentirmos autorizados a esperar o melhor.
           O seu filme mais recente, “O Fiel Jardineiro”/”The Constant Gardener” (2005), baseado no romance homónimo de John le Carré, apesar de ser uma produção britânica, falada em inglês e com participantes e equipa inglesa, não só não desilude como confirma o cineasta como um nome a reter no actual panorama do cinema mundial.
           Tendo a seu favor um tema de grande interesse e de grande actualidade, o da relação dos grandes laboratórios farmacêuticos com as populações carenciadas da África Negra, Meirelles não se limita a gerir com competência os meios postos ao seu dispor, antes cria uma obra de grande intensidade dramática e de grande interesse fílmico, motivos que tornam “O Fiel Jardineiro” um filme cativante pelas melhores razões. Na  verdade, a estrutura temporal que adopta permite que nos seja mostrada com justificado interesse a relação do protagonista, Justin Quayle/Ralph Fiennes, com a mulher, Tessa/Rachel Weisz, do mesmo modo que nos obriga a acompanhar, na actualidade, a odiosa exploração a que as populações africanas são sujeitas, ao ponto de serem usadas como cobaias humanas, situação para a qual ele, um diplomata relativamente bem instalado na sua carreira profissional, só desperta, e violentamente, depois da morte dela. O inquérito que então conduz torna-se a espinha dorsal do filme porque o realizador cria personagens e situações perfeitamente credíveis, que nos arrebatam e levam para o coração de uma intriga internacional com cumplicidades de peso ao mais alto nível.
                               
             Aliás, diga-se que a problemática tratada pelo filme e pelo romance em que se inspira é algo com que estamos relativamente familiarizados devido ao seu tratamento frequente pela comunicação social, mas a arte do cineasta está na construção formal e narrativa, na criação de personagens e no modo como filma África e os seus habitantes, nomeadamente os arredores miseráveis de Nairobi, capital do Quénia. Dir-se-ia que, quanto à filmagem em exteriores reais e pobres, Fernando Meirelles prolonga um trabalho fílmico sem complacências iniciado em “Cidade de Deus”, sem cair nem no panorama turístico nem no miserabilismo.
             Se em “O Fiel Jardineiro” as populações africanas são mostradas como de facto são, as relações desiguais entre europeus e africanos na actualidade, num hoje pós-colonial, são também mostradas tal como são, e é porque isso se torna perfeitamente claro no decurso da narrativa, e porque esta respeita a personagens com as quais fomos levados a criar laços de empatia, que a construção fílmica ganha um relevo inusitado, com as suas falsas conclusões provisórias e o imenso drama humano como algo mais do que simples pano de fundo.
          Contando com uma equipa notável, Fernando Meirelles não se limita a consolidar o prestígio adquirido com o seu filme anterior, antes se mostra à altura deste novo (e acredito que empolgante) desafio e faz uma obra verdadeiramente pessoal para grandes audiências, o que, hoje em dia, pode não ser tão fácil e/ou frequente como isso, que ao mesmo tempo é um filme político com justos motivos de interesse e de reflexão sobre estes globalizados poderes que, mundial e localmente, nos governam.
           Por sua vez, Edward Zwick, que tem no seu passado obras estimáveis como “Tempo de Glória”/"Glory" (1989), “Estado de Sítio”/"The Siege" (1998) e “O Último Samurai”/"The Last Samurai" (2003), realizou “Diamante de Sangue”/”Blood Diamond” (2006), que vem inserir-se na parte mais interessante da obra dele, aquela que é anunciada pelo primeiro dos citados filmes. E também ele se ocupa da África Negra, a propósito do grave, escandaloso problema que se sabe ser aquele que é referido pelo título do filme.
          As boas intenções, que às vezes não chegam, chegam e sobram para mostrar com clareza quer o tráfico de diamantes desde a sua origem, e especialmente nesta, quer o contexto social e político africano, neste caso centrado na Serra Leoa. Tenho para mim que filmes como este ganham muito do seu poder de comunicação com a adopção de uma linguagem cinematográfica simples, acessível de imediato, e creio que o cineasta o compreendeu também, quer na construção das personagens e da narrativa, quer no estilo, directo e dramático, que utiliza.
          De facto, a situação centra-se em Solomon Vandy/Djimon Hounsou, o homem que descobriu e escondeu um diamante especialmente valioso e que é perseguido por um jornalista ex-mercenário, Danny Archer/Leonardo Di Caprio, o qual depara, de passagem, com uma jornalista americana, Maddy Bowen/Jennifer Connelly. Mas perante esta situação, sumariamente descrita, Edward Zwick vai ao encontro da clareza narrativa e fílmica ao distribuir sabiamente os elementos dramáticos, exacerbando-os quando é caso disso, mas sem se deixar levar por um excesso de simplificação, que era o lado mais fraco dos seus filmes anteriores, salvo “Tempo de Glória”. Pelo contrário, tanto do lado de Solomon como do lado de Archer é assumida e explorada a complexidade de cada um e da situação em que está envolvido, de que fazem parte a família do primeiro e as cumplicidades e rebates de consciência do segundo. Além disso, é bem utilizada uma dimensão de filme de acção, sem fazer esquecer o contexto em que se situa.
                      
            No limite do maniqueísmo, neste caso perfeitamente justificado, o filme acaba por lançar um olhar que vale a pena acompanhar pelo contexto social e político dos “diamantes de sangue”, no que é ajudado pela escorreita linguagem cinematográfica que utiliza, com a curiosidade de certos movimentos giratórios de câmara poderem filiar-se em “Cidade de Deus”, o filme que celebrizou Fernado Meirelles. A apregoada boa consciência, liberal ou conservadora, do cinema americano leva mesmo aqui um bom abanão, porque todos percebemos que se está perante uma situação precária, que persiste mesmo depois de encontradas soluções localizadas, na medida em que está em causa um negócio próspero e vasto de que se não vislumbra o fim.
            A eficácia política de filmes como estes mede-se quer pela natureza dos temas tratados quer pela forma narrativa adoptada, em tempos em que outro tipo de  preciosismos fílmicos pode diminuir o alcance do que se pretende dizer medido pelo impacto junto dos espectadores que se pretende atingir. Os filmes políticos abundam mesmo, na actualidade, sobre os mais quentes assuntos dela, e têm o sucesso que se conhece. Neste caso, também toda a gente já ouviu falar do problema, sabe que existe pela comunicação social, e o filme tira partido disso ao tentar aprofundar os mecanismos que estão por trás de tal tráfico e as implicações dele noutros tráficos. Ao cumprir com limpeza, por vezes com brio esse programa, Edward Zwick esclarece, faz pensar a partir de um conhecimento comum, e não da ignorância do espectador comum.
      O filme tem o interesse suplementar de uma excelente direcção de fotografia, da responsabilidade daquele que é porventura o mais internacional dos portugueses do cinema internacional, Eduardo Serra, e de ter sido parcialmente filmado em Moçambique. E vale mesmo a pena referir o nome do argumentista, Charles Leavitt, que se baseou em história sua e de C. Gaby Mitchell, porque se percebe que grande parte do sucesso do filme assenta no argumento, embora em termos cinematográficos pudesse não ter ido muito longe sem Edward Zwick.
            E aquele final lembra Hemingway…

Março 2007

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