O brasileiro
Fernando Meirelles chamou a atenção sobre si com “Cidade de Deus” (2002), filme
notável, duro e áspero, sobre a “favela” brasileira, levando-nos, com Walter
Salles, a acreditar de novo no cinema brasileiro e a dele nos sentirmos
autorizados a esperar o melhor.
O seu filme mais recente, “O Fiel
Jardineiro”/”The Constant Gardener” (2005), baseado no romance homónimo de John le Carré, apesar de ser uma produção britânica, falada em inglês e com
participantes e equipa inglesa, não só não desilude como confirma o cineasta
como um nome a reter no actual panorama do cinema mundial.
Tendo a seu favor um tema de grande
interesse e de grande actualidade, o da relação dos grandes laboratórios
farmacêuticos com as populações carenciadas da África Negra, Meirelles não se
limita a gerir com competência os meios postos ao seu dispor, antes cria uma
obra de grande intensidade dramática e de grande interesse fílmico, motivos que
tornam “O Fiel Jardineiro” um filme cativante pelas melhores razões. Na verdade, a estrutura temporal que adopta permite
que nos seja mostrada com justificado interesse a relação do protagonista,
Justin Quayle/Ralph Fiennes, com a mulher, Tessa/Rachel Weisz, do mesmo modo
que nos obriga a acompanhar, na actualidade, a odiosa exploração a que as
populações africanas são sujeitas, ao ponto de serem usadas como cobaias
humanas, situação para a qual ele, um diplomata relativamente bem instalado na
sua carreira profissional, só desperta, e violentamente, depois da morte dela.
O inquérito que então conduz torna-se a espinha
dorsal do filme porque o realizador cria personagens e situações
perfeitamente credíveis, que nos arrebatam e levam para o coração de uma
intriga internacional com cumplicidades de peso ao mais alto nível.
Aliás, diga-se que a problemática
tratada pelo filme e pelo romance em que se inspira é algo com que estamos
relativamente familiarizados devido ao seu tratamento frequente pela
comunicação social, mas a arte do cineasta está na construção formal e
narrativa, na criação de personagens e no modo como filma África e os seus
habitantes, nomeadamente os arredores miseráveis de Nairobi, capital do Quénia.
Dir-se-ia que, quanto à filmagem em exteriores reais e pobres, Fernando
Meirelles prolonga um trabalho fílmico sem complacências iniciado em “Cidade de
Deus”, sem cair nem no panorama turístico nem no miserabilismo.
Se em “O Fiel Jardineiro” as
populações africanas são mostradas como de facto são, as relações desiguais
entre europeus e africanos na actualidade, num hoje pós-colonial, são também mostradas tal como são, e é porque
isso se torna perfeitamente claro no decurso da narrativa, e porque esta
respeita a personagens com as quais fomos levados a criar laços de empatia, que
a construção fílmica ganha um relevo inusitado, com as suas falsas conclusões
provisórias e o imenso drama humano como algo mais do que simples pano de fundo.
Contando com uma equipa notável,
Fernando Meirelles não se limita a consolidar o prestígio adquirido com o seu
filme anterior, antes se mostra à altura deste novo (e acredito que empolgante)
desafio e faz uma obra verdadeiramente pessoal para grandes audiências, o que,
hoje em dia, pode não ser tão fácil e/ou frequente como isso, que ao mesmo
tempo é um filme político com justos motivos de interesse e de reflexão sobre
estes globalizados poderes que, mundial e localmente, nos governam.
Por sua vez, Edward Zwick, que tem
no seu passado obras estimáveis como “Tempo de Glória”/"Glory" (1989), “Estado de Sítio”/"The Siege" (1998) e “O
Último Samurai”/"The Last Samurai" (2003), realizou “Diamante de Sangue”/”Blood Diamond” (2006), que vem
inserir-se na parte mais interessante da obra dele, aquela que é anunciada pelo
primeiro dos citados filmes. E também ele se ocupa da África Negra, a propósito
do grave, escandaloso problema que se sabe ser aquele que é referido pelo título
do filme.
As boas intenções, que às vezes não
chegam, chegam e sobram para mostrar com clareza quer o tráfico de diamantes
desde a sua origem, e especialmente nesta, quer o contexto social e político
africano, neste caso centrado na Serra Leoa. Tenho para mim que filmes como
este ganham muito do seu poder de comunicação com a adopção de uma linguagem cinematográfica simples, acessível de imediato, e creio que o cineasta o compreendeu
também, quer na construção das personagens e da narrativa, quer no estilo,
directo e dramático, que utiliza.
De facto, a situação centra-se em Solomon Vandy/Djimon
Hounsou, o homem que descobriu e escondeu um diamante especialmente valioso e
que é perseguido por um jornalista ex-mercenário, Danny Archer/Leonardo Di
Caprio, o qual depara, de passagem, com uma jornalista americana, Maddy
Bowen/Jennifer Connelly. Mas perante esta situação, sumariamente descrita,
Edward Zwick vai ao encontro da clareza narrativa e fílmica ao distribuir
sabiamente os elementos dramáticos, exacerbando-os quando é caso disso, mas sem
se deixar levar por um excesso de simplificação, que era o lado mais fraco dos
seus filmes anteriores, salvo “Tempo de Glória”. Pelo contrário, tanto do lado
de Solomon como do lado de Archer é assumida e explorada a complexidade de cada
um e da situação em que está envolvido, de que fazem parte a família do
primeiro e as cumplicidades e rebates de consciência do segundo. Além disso, é bem
utilizada uma dimensão de filme de acção, sem fazer esquecer o contexto em que
se situa.
No limite do maniqueísmo, neste caso
perfeitamente justificado, o filme acaba por lançar um olhar que vale a pena
acompanhar pelo contexto social e político dos “diamantes de sangue”, no que é
ajudado pela escorreita linguagem cinematográfica que utiliza, com a
curiosidade de certos movimentos giratórios de câmara poderem filiar-se em
“Cidade de Deus”, o filme que celebrizou Fernado Meirelles. A apregoada boa
consciência, liberal ou conservadora, do cinema americano leva mesmo aqui um
bom abanão, porque todos percebemos que se está perante uma situação precária, que persiste mesmo depois de encontradas soluções localizadas, na medida em
que está em causa um negócio próspero e vasto de que se não vislumbra o fim.
A eficácia política de filmes como
estes mede-se quer pela natureza dos temas tratados quer pela forma narrativa adoptada,
em tempos em que outro tipo de preciosismos fílmicos pode diminuir o alcance
do que se pretende dizer medido pelo impacto junto dos espectadores que se pretende
atingir. Os filmes políticos abundam mesmo, na actualidade, sobre os mais
quentes assuntos dela, e têm o sucesso que se conhece. Neste caso, também toda
a gente já ouviu falar do problema, sabe que existe pela comunicação social, e
o filme tira partido disso ao tentar aprofundar os mecanismos que estão por
trás de tal tráfico e as implicações dele noutros tráficos. Ao cumprir com
limpeza, por vezes com brio esse programa, Edward Zwick esclarece, faz pensar a
partir de um conhecimento comum, e não da ignorância do espectador comum.
O filme tem o interesse suplementar
de uma excelente direcção de fotografia, da responsabilidade daquele que é
porventura o mais internacional dos portugueses do cinema internacional,
Eduardo Serra, e de ter sido parcialmente filmado em Moçambique. E vale
mesmo a pena referir o nome do argumentista, Charles Leavitt, que se baseou em
história sua e de C. Gaby Mitchell, porque se percebe que grande parte do
sucesso do filme assenta no argumento, embora em termos cinematográficos
pudesse não ter ido muito longe sem Edward Zwick.
E aquele final lembra Hemingway…
E aquele final lembra Hemingway…
Março 2007
Sem comentários:
Enviar um comentário