“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Obsessões

      O filme "A Cativa"/"La captive", de Chantal Akerman (2000) inspira-se livremente, mas com uma liberdade plena de fidelidade, no quinto volume, "A Prisioneira", de "Em busca do tempo perdido"/"À la Recherche du Temps Perdu", de Marcel Proust, um dos mais célebres - justificadamente célebres, esclareça-se - romances do século XX e um dos que mais decisivamente contribuiram para a criação e o lançamento da modernidade literária.
      Diga-se preambularmente que a relação do cinema com Proust nunca foi fácil, nem o podia ser atendendo à extensão e complexidade da sua obra-prima. Sabe-se como Luchino Visconti, primeiro, Joseph Losey, depois, tiveram nos seus horizontes uma adaptação cinematográfica dela, e como acabou por ser Volker Schlöndorff a dirigir "A Paixão de Swann"/"Un amour de Swann" (1984), baseado no primeiro volume do ciclo romanesco de Proust, num filme aliás de grande qualidade, embora sem o golpe de génio que de Visconti ou de Losey se poderia ter esperado. Mais recentemente, foi a vez do chileno radicado em França desde os anos 70 do século passado Raoul Ruiz meter ombros a tão ousado empreendimento com "O Tempo Reencontrado"/"Le temps retrouvé" (1999), o último volume da "Recherche..", num filme arrojado e vistoso, que deve ser visto no contexto da obra do cineasta.
                                    
      Ora o projecto de Chantal Akerman, cineasta belga de méritos firmados por uma obra vasta e interessante, que se revelou em 1975 com "Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles", um filme ainda hoje indispensável, passa por uma abordagem do cerne da temática do livro, sem pretender o registo de "filme de época" nem a deliberada actualização, mas procedendo à inversão do sexo dos protagonistas. Assim ela consegue transmitir-nos a paixão possessiva e obsessiva do protagonista, Simon/Stanislas Merhar, por Ariane/Sylvie Testud, partindo de diálogos extremamente cerrados que têm também por objectivo questionar a sexualidade do outro (no caso, de Ariane), nomeadamente quando exercida com outros/as, o que faz acontecer em imagens que privilegiam uma escala de planos que como que entra em diálogo com as personagens, em cenários que elas habitam e que as habitam em vez de se limitarem a situá-las. Percebe-se como o projecto da cineasta subverte a fonte em que se inspira, já por si subvertida pela homossexualidade de Proust, para tentar atingir o cerne de uma paixão.
      De tão viciados que andamos todos no grande espectáculo cinematográfico à americana, num fogo de vista visual que pretende escamotear o vazio de ideias, que somos forçados, perante "A Cativa", a prestar atenção, a concentar-nos em imagens e diálogos, uma vez que a obsessão amorosa exige, naturalmente, além da posse física, a verbalização, que permita a posse da alma do outro. É por compreender que este teria de ser necessariamente um filme de palavras, muitas palavras, para além de ser um simples filme de imagens, nas quais, aliás, aquelas surgem com a sua exacta força emotiva, que Chantal Akerman consegue atingir o cerne da obra literária de que parte e imprimir um carácter intemporal à matéria passional de que o filme trata.
      De uma grande sobriedade mas também de uma grande beleza formal, "A Cativa" consegue, assim, chegar onde outros não chegaram, i. e., à raiz da inspiração proustiana, a esse tormento vivido entre o passado evocado e o presente da evocação, entre o virtual e o actual, de que Proust demonstrou possuir o segredo, mantendo uma elegância formal sem a mínima concessão ao efeito fácil, antes procurando polir como um diamante a sua base narrativa, humana e psicológica. A utilização frequente, mas não exclusiva, do plano fixo e longo, uma presença constante do fora de campo sonoro e a música assinalam neste filme o ponto de elaboração fílmica que a cineasta atinge.
                                              
     Mas atingir o cerne da paixão será, como pretendido pela cineasta (e pelo escritor), uma questão independente do sexo de cada um e da natureza da sua paixão? Não me cabe tomar aqui posição sobre tal, mas chamar a atenção para as posições claramente assumidas por Proust e por Akerman: o essencial da paixão é a ausência, a falta, o desejo de saber mais, de saber tudo, que leva à perda. É mesmo por isso que me parece que se enganam no essencial sobre esta questão, tratada de múltiplos modos pela literatura e pelo cinema, pela poesia e pela música, todos aqueles que a pretendem situar apenas em termos unidimensionais.
   Se o final do filme parece remeter directamente para "A Mulher Que Viveu Duas Vezes"/"Vertigo", de Alfred Hitchcock (1958), o filme ainda hoje paradigmático sobre o tema, isso não sucede por acaso, uma vez que é todo o filme que segue uma linha de rumo hitchcockiana, entre a suspeita, a dúvida e a incerteza, o que a cineasta gere com grande sabedoria cinematográfica, a ponto de fazer com que o seu filme estabeleça um gritante contraste com as múltiplas e avulsas citações cinematográficas de Hitchcock que aparecem a torto e a direito no cinema dos últimos anos. Como instalar a dúvida no espírito do espectador e no de Simon, como fazer aquele sintonizar-se com este mesmo nos recônditos mais remotos (os mais atribulados também) da paixão, essa é a arte que Chantal Akerman aqui pratica com grande acerto e com grande rigor estético, e que nos deixa abismados perante momentos de pura beleza, de pura inquietação.
      A insistência nos planos fixos ajusta-se muito bem à forma como o filme está narrativamente organizado, e torna-se particularmente adequada no final, de que aquela posição da câmara aumenta desmedidamente o efeito. A música, por sua vez, chega a invadir o campo sonoro, ao ponto de por vezes nele dominar, e fá-lo de uma maneira que, conjugada com os sons e ruídos, sempre obriga a ter presente a dorida experiência sentimental do protagonista e a despojada e desarmante disponibilidade de Ariane, que constitui, aliás, um dos elementos mais perturbadores do filme.


Dezembro 2006

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