É conhecida a
história de Pocahontas e do Capitão John Smith, que constitui como que um mito
fundador da nação americana. É conhecida a obra, feita de poucos e
temporalmente muito distantes filmes, de Terrence Malick: todos os filmes dele
são de qualidade superlativa. Do encontro do cineasta mítico com o mito era de
esperar o melhor, e as expectativas concretizaram-se plenamente.
De facto, “O Novo Mundo”/”The New
World” (2005), não sendo, embora, o melhor do cineasta, é um filme em que ele confirma todas as expectativas,
se não mesmo certezas, que se criaram com os seus filmes precedentes: as que
afirmavam ser ele de um talento raro, único, no panorama do cinema americano.
Na linha de um John Ford mas muito diferente dele, Malick
cria neste filme uma obra pessoal de grande inspiração visual e plástica,
tratando o mito ao nível da natureza, selvagem e idílica, do início do século
XVIII. É neste quadro que as personagens se definem, que os conflitos
resultantes do “cruzamento de olhares” entre o velho e o novo mundo ganham
credibilidade.
E quando falo de quadro não me
limito a referir um “pano de fundo” cenográfico para um conflito. Na verdade, a
maneira como o cineasta cria o seu filme faz com que personagens e cenário
natural se tornem indissociáveis, com o humano como parte da natureza e a
natureza como parte integrante do humano, de uma forma que não é frequente
encontrar no cinema mas que é perfeitamente consistente com os filmes
anteriores de Malick – para não irmos mais longe, e convém ir, com “A Barreira Invisível”/”The
Thin Red Line” (1998), seu filme imediatamente anterior.
E é dessa maneira, inteiramente
visual e fílmica, que nós percebemos que há os habitantes nativos daquele novo
mundo e os homens que vêm de fora. Quero eu dizer na minha que a cor da pele
não basta para distinguir uns dos outros, há que perceber como cada um dos
grupos se move sobre a terra, uns sobre a terra sua e outros sobre a terra
alheia, e tudo isso está muito bem dado visual e filmicamente no filme. Aliás,
é desta mesma maneira que o enlace entre o Capitão John Smith/Colin Farrell e
Pocahontas/Q’Orianka Kilcher se dá e se estabelece, como é dessa maneira que os
conflitos dele com os seus companheiros de viagem surgem. E é, assim, natural
que seja da mesma maneira que se estabelece o contraste, no final do filme,
entre a “Old Albion”, com a sua arquitectura monumental, e esse novo mundo, em
que o lugar dos monumentos é ocupado pela natureza. Tudo natural, tudo claro,
límpido, porque tudo de uma grande sabedoria cinematográfica.
Esta sabedoria, esta “ciência” do
cinema, radica-a o cineasta num grande cuidado com o enquadramento
(excepcionais os planos tirados do interior contra a porta ou a janela abertas)
e na direcção dos actores no espaço criado por esse enquadramento, mas também
nos excelentes e sempre apropriados movimentos de câmara, muitas vezes muito
amplos e na sua maioria para a frente. Dessa maneira Terrence Malick cria o
espaço e o tempo do seu filme – o espaço-tempo deste -, o que passa necessariamente
por uma montagem certa, precisa, que determina o ritmo e a cadência deste “O
Novo Mundo”, respeitando os enquadramentos e subvertendo-os, e dando um sentido
novo e mais dinâmico aos movimentos de câmara.
De mais? Quase o diria, de tal
maneira as personagens são vistas às vezes quase de passagem, mas é assim
mesmo, é esse o peso justo, porque o estilo justo do cineasta, e é ele que
permite entender não só o conflito entre as personagens mas também o conflito
delas com a natureza – e são prodigiosos os planos dela sem personagens.
Uma poética de Terrence Malick neste
“O Novo Mundo” torna-se o entendimento justo, indispensável do filme, como o
era já nos seus filmes anteriores. Será apenas de sublinhar, neste aspecto, que
os elementos fílmicos formais para que chamei a atenção vêm todos dos filmes
anteriores do cineasta, designadamente do já citado “A Barreira Invisível”, que
se torna, assim, o filme fundador desta tardia mas excepcional segunda parte da
obra do cineasta. Elementos esses que, deve notar-se, estavam já presentes nos
seus filmes iniciais (“Os Noivos Sangrentos”/”Badlands”, 1974, e “Dias do
Paraíso”/”Days of Heaven”, 1978), mas aqui surgem mais trabalhados, o que só
confirma que o talento (poupo as palavras) do autor não é de modo nenhum
acidental.
Há bons e maus, civilizados e
selvagens neste filme? Talvez, mas o que parece interessar Malick mais do que
isso é a civilização dos selvagens em confronto com a selvajaria dos
civilizados, que foi, como todos sabemos, a forma como nasceu o mito e como
nasceu a nação americana, aliás também em confronto com as potências coloniais
da época, o que o filme, também nesse aspecto respeitando quer o mito quer a
história, mostra, dá a ver muito bem.
Março 2007
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