Negro, manchado de luz que
permite ver. Luzes como fontes visíveis de iluminação ou uma luz exterior,
natural. Espaços vazios, pedaços, retalhos – sombras -, prédios, chaminés,
ruínas, árvores - ferros -, tecidos bordados, recortes, recantos – escadas -,
mas também corpos, vivos e mortos.
Negro
que as luzes não travam, não quebram, não vencem, para nele apenas traçarem
linhas de visibilidade que permitem vislumbrar o que ainda existe antes de o quadro se fechar. São os últimos
clarões que atravessam alguns espaços, já vazios. Os detritos, os resquícios
derradeiros surgem a preto e branco, com precisão e variedade de linhas, quase pictórica mas bem
fotográfica.
Já
tudo acabou, vida e viventes, e as fotografias de Paulo Nozolino são como que criadas de memória sobre
aquilo que existiu antes do fim. As próprias formas, os próprios objectos não têm
densidade, profundidade, surgem lisos sobre uma superfície lisa, sem distinção entre próximo
e distante, como colagens. Os espaços, vazios (repito), não têm já o que os preencheu que
não sejam outros espaços vazios que neles dasajeitadamente se encaixam, numa sombria
montagem.
Como negro
sobre negro recortado, não metálico, não brilhante, mas contrastado como num filme adormecido no
fundo da memória, já alheia à história, a uma história. Pequenos quadros de uma pintura
abstracta a preto e branco naturais (não exactamente branco, mas cinza, de cinzas
abandonadas, esquecidas), porque essa era a própria condição do que foi fotografado, em
condição de acesso a uma origem, a uma raiz primordial que assim tivesse sido
primitivamente. Sem metáforas, sem sentidos segundos, aquilo foi assim e
assim é recordado depois de tudo ter acabado por um fotógrafo de impressionante rigor, que reproduz de cor aquilo de que ainda se lembra.
Retalhos, pedaços, ruínas, escombros últimos e todavia primordiais,
porque de outra coisa anterior não resta já
memória alguma: corpos, vida, movimento. O próprio tempo parou naquele instante de
que já nada podia nascer, naqueles espaços onde já nada podia crescer. Linhas desenham
formas. Arestas sem gumes atravessam, delimitando-os, espaços desabitados,
separam a luz da sombra que criam, em locais exactos onde nem músicas, gritos
lancinantes, ruídos estridentes se ouvem. O tempo parou sobre destroços e naquele
negrume não há beleza para além da das formas e dos contrastes.
Não
há lugar para embriaguez, emoção ou lágrimas, o pulso não acelera, os pêlos e os cabelos não se põem em
pé, a memória não se comove. Nada daquilo existe, talvez nunca tenha mesmo existido
- e esse é o mistério maior destas fotografias: elas criam de memória, fotografam as
impressões deixadas na memória pela recordação de algo a que não se assistiu. Elas
fotografam os vestígios, já não fantásticos, muito menos fantasmáticos, de coisas, objectos,
seres antecedentes ou simultâneos do fim, elas fazem aparecer o que foi/terá sido e que
nem a própria imaginação se atreveria a criar.
Não
falam de liberdade, glória ou poder, de vitórias, descobertas ou conquistas. As fotografias abstraccionistas de
Paulo Nozolino recolhem o que ficou guardado num fundo sem fundo de um caos
simultaneamente final e primeiro, de que nada se salvou, de que ninguém sobreviveu. Que
talvez nem sequer tenha existido, não tenha tido um antes nem um depois.
São
fotografias feitas com cinzas frias que criam formas abstractas, espaços vazios e desligados. Não há luto
por memórias antigas, já que o que aqui está em causa são memórias de memórias
esquecidas, reminiscências aplainadas sobre o vazio, no outro lado, oco, do espaço e do
tempo, sobre o qual se acumularam. Nem sequer se tratará de acreditar na imagem ou
na realidade – acredita-se sempre na realidade da imagem - mas de criar, em
contraste velado, ensombreado, o incriado a partir do já desaparecido, do que talvez
nunca tenha mesmo existido.
Os
sentidos não são impressionados, o visitante não se sente chocado nem surpreendido. Todos sabemos que
foi assim, que é assim que o artista tem sempre que criar o que antes do seu gesto
não existia para que olhos alguns o vejam. Nem mesmo as palavras podem, sem elas, dizer
bem o que estas fotografias dizem de abissal, mostrando-o. Nem os olhos guardam
memória do que (não) viram (o vazio) nem os ouvidos do que (não) ouviram (o
silêncio) – e os outros sentidos não são para aqui chamados.
A
parede é negra e nela se recortam pequenas fotografias negras sulcadas por alguns traços, clarões de luz que
permitem vislumbrar, em pequena escala, alguns fragmentários objectos isolados, desligados.
Sombras de sombras assombradas de que somos nós que fazemos a montagem,
de que somos nós que criamos o sentido, se disso formos capazes.
Não
há crepitações, restolhares, barulhos, confusões. Nem ventos ou brisas sopram, nem cascatas ou gotas de
água caem. Calaram-se piano, viola, percussão e vozes. O Sol consumiu-se até se
apagar. Suspenso, o último momento poético foi fixado, criado por estas 32
fotografias de "Bone Lonely".
Junho 2009
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