Lendário antes de estreado,
“Kill Bill 1 & 2” (2003/2004)
terá sido dividido em duas partes por imposição da produção, negociada com o
cineasta. Trata-se de um projecto desmedido, a uma escala que supera tudo o que
Quentin Tarantino fez anteriormente. Excede, pois, o simples jogo de massacre
de “Cães Danados”/”Reservoir Dogs” (1992), não se limita a um bem elaborado jogo
temporal, como “Pulp Fiction” (1994), nem se queda por uma narrativa interessante,
como “Jackie Brown” (1997), os seus no entanto notáveis filmes anteriores.
À sua
quarta longa-metragem, Tarantino sobe a parada e reúne num só filme os motivos
de interesse de cada um dos anteriores, oferecendo-nos, em especial na parte 1,
um pot-pourri das cenas de violência tipo artes marciais – não o tinha dito
antes, mas julgo que toda a gente sabe que este é um filme centrado em larga
medida na prática das artes marciais, que deram origem a um género de filmes no
Extremo Oriente, em especial em Hong-Kong, sobretudo a partir dos anos 70
do século XX -, um saboroso e bem conseguido jogo com diferentes tempos da
narrativa, alguns deles dados de perspectivas diferentes, como a sequência de
abertura, e uma narrativa distendida, dilatada temporalmente e com um interesse
óbvio, que decorre quer da sua modernidade quer do seu tratamento. Tudo isto,
que não é pouco, é imenso, é tornado desmesurado pelo permanente tom de ironia
e de humor que caem especialmente bem neste contexto que, a ser tomado
exclusivamente a sério, seria inimaginável.
A história
é simples e conhecida, até porque François Truffaut fez um filme com o mesmo
tema, “A Noiva Estava de Luto”/”La mariée était en noir” (1968), embora Tarantino se tenha expressamente inspirado em "A mulher escorpião"/"Joshuu 701-gô: Sasori", do japonês Shunya Ito (1972), filme por sua vez inspirado na manga de Toru Shinohara: uma mulher,
Uma Thurman, vê o momento do seu casamento desfeito por assassinas mãos
criminosas, as das “víboras assassinas”, grupo a que pertencera. Só que em
“Kill Bill” ela é também alvo e, apesar de ter sido atingida por uma bala na
cabeça, sobrevive e vai cumprir a sua vingança. Acresce que estava grávida
quando ferida, o que torna dupla a sua vingança, que dá o título português ao
filme: “Kill Bill – A Vingança”.
De pouco
se poderia vangloriar Quentin Tarantino se não tornasse a vingança da Noiva num
crescendo de dificuldades para eliminar as assassinas, como se ela tivesse que
passar por provas cada vez mais difíceis para chegar ao seu objectivo último e
renascer. Só que não seriam provas iniciáticas, mas de vida sobrevivente.
Assim, a primeira parte do filme concentra, como disse, as principais
sequências de luta, com alguns destaques absolutos, como o duelo com O Ren
Ishii/Lucy Lee, precedido pelos que opõem a Noiva a Sophie Fatale/Julie
Dreyfuss e a Go Go Yubari/Chiaki Kuriyama, sem esquecer a luta dela com os 88
guarda-costas . Mas se fosse só luta, mesmo artes marciais espectaculares, o filme
não passaria de mais um filme típico de género. Ora o cineasta excede-se na
“mise-en-scène” cinematográfica, nas sequências de combate e nas outras, pelo
recurso, em especial na parte 1,
a uma variada escala de planos, do muito
grande-plano, que em vários momentos domina, até ao plano geral, às vezes com
passagens bruscas de um dos extremos da escala para o outro. Dito isto, está-se
ainda longe de ter dito tudo, já que “Kill Bill” tem um ritmo forte, por vezes
sincopado, diria mesmo selvagem, graças à montagem que, juntamente com a mobilidade das
personagens, o excepcional trabalho dos actores, em especial Uma Thurman
numa criação prodigiosa, e a música, é o que leva a que este filme longo pareça
durar muito pouco, no oposto daqueles filmes mais curtos do que ele que parecem
nunca mais acabar. Na verdade, não guardo memória de, em tempos recentes, não
ter dado pela passagem do tempo durante a projecção de um filme como durante a
projecção destes dois filmes que fazem
um só, ainda por cima com uma habilíssima articulação que recupera plenamente o
serial do cinema mudo. Literalmente, Tarantino e os seus cúmplices
fascinam inteiramente o espectador, presa de um jogo, de um divertimento
cinematográfico com momentos terríveis, sem os quais ele não seria o que é.
Se o jogo
com o tempo não é aparentemente tão brilhante como em “Pulp Fiction” é porque
não tem já a novidade que naquele filme teve. Tendo isso em conta, as
liberdades temporais a que o cineasta se dedica são fantásticas e encontram
sempre a justificação suprema no facto de aquela ser a boa maneira de contar
aquela história. E por grandes e complicadas que sejam as piruetas temporais do
filme, nunca nos perdemos, sabemos permanentemente onde estamos, de onde
partimos, como ficamos rapidamente a saber para onde estamos a ser levados.
Essa permanente noção do tempo da narrativa em que estamos não aconteceria se
a própria narrativa não tivesse, por si mesma, o interesse que tem e mantém de
princípio a fim. Cada personagem tem o seu peso específico, Bud/Michael Madsen
e Bill/David Carradine, os dois irmãos, Hattori Honzo/Sonny Chiba, ou
Elle/Daryl Hannah, deixando para outro nível o interesse da Noiva, Uma Thurman
em muito grande forma e em íntima cumplicidade com o cineasta. Digamos, de
forma simplista e imprecisa, que o interesse humano das personagens se destaca
mais na parte 2, apesar de nela existirem também excelentes momentos de acção,
embora marcados, eles próprios, pela reflexão (a presença de Pei Mei/Gordon Liu
e o duelo verbal final entre Black Mamba/Beatrix/a Noiva e Bill).
Em síntese, em “Kill Bill 1 & 2” Quentin Tarantino faz um filme e a sua
própria paródia, mais que a paródia de outros géneros, que também faz, a partir
do drama fílmico (o spaghetti western, os filmes de kung fu). Esse registo,
como que de aparente indecisão entre dois registos, dá ao filme um interesse
único, que é acrescentado por referências à própria história do cinema, com a
integração do desenho animado na parte 1 e de ecrãs em que passam filmes na
parte 2, por pontuações sonoras de raiz televisiva e por uma excepcional banda
sonora, cuja música contribui poderosamente para o ritmo ímpar do filme.
Enérgico, estimulante e
belíssimo ”Kill Bill”.
Dezembro 2006
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